terça-feira, 9 de julho de 2013

Sombras Perifeéricas: poesia em forma de drama



Espetáculo: Teatro das Sombras.
Montagem da Trupe Perifeéricos.
Edson Fernando: Ator e diretor Teatral, Prof. de Teoria do Teatro da ETDUFPA, atua no COLETIVO DE ANIMADORES DE CAIXA e como pesquisador no GITA – Grupo de Investigação do Treinamento Psicofísico do Atuantes.    
No último sábado (01.06) tive oportunidade de conferir novamente a jovem Trupe Perifeéricos em apresentação no anfiteatro da Praça da República – Belém, por ocasião de sua circulação estadual com o espetáculo Teatro das Sombras – contemplado com o prêmio Miriam Muniz de Teatro (2012). A montagem que conta agora com uma estrutura cenográfica que permite entradas e saídas de cena (central e laterais), além de pequenas mudanças na visualidade, mantém a vitalidade, cadência e, sobretudo o refinamento no trato dramatúrgico: as palavras não são desperdiçadas ao acaso no afã de se livrar do texto o mais rápido possível, ao contrário, cada palavra parece atravessar o palato dos atuantes carregadas de uma atmosfera mágica, envolvente e misteriosa adjetivos que somam na já refinada poesia existe na dramaturgia. O mérito, neste caso, deve ser tributado em dobro ao elenco: em primeiro lugar pela afinação na criação da dramaturgia, pois mesmo sendo uma criação coletiva conseguiram estabelecer e manter unidade e traço estilístico do início ao fim; em segundo lugar por estabelecer um jogo dinâmico com o texto, explorando ritmos e nuances com espontaneidade e sem incorrer em falsetes despropositados evitando assim, interpretações monocórdicas – que invariavelmente tornam qualquer texto maçante – de uma dramaturgia que, diga-se de passagem, não é curta.
Sobre a atuação do jovem elenco – três atores, três atrizes e um músico – merece destaque, a movimentação de cena que embora flerte com a corporeidade dos bufões e dos tipos da dell'arte não recai nos estereótipos descabidos, apropriando-se apenas do elemento propulsor dessas linguagens para conferir a cada personagem dinamismo e irreverência; neste aspecto, todos estabelecem cumplicidade assegurando o jogo dinâmico da encenação onde o que prevalece é o desejo de nunca deixar a centelha de vida do teatro se apagar em detrimento da vaidade de cada um.    
Algumas colocações pontuais merecem atenção. O personagem Dermond, interpretado por Ícaro Gaya, embora assuma caracteres homossexuais não permite que sua atuação descambe para a afetação vulgar, repleta de trejeitos e gestualidade grosseira com apelação gratuita para o riso fácil. O que Ícaro nos apresenta é o olhar doce e inocente da personificação de uma força da natureza – o vento. A pureza em seu olhar impede que o associemos a imagem vulgarizada e depreciativa dos homossexuais que infelizmente ainda prevalece em nossa sociedade machista– “bicha”, “viado”, “trava”, “mona”, etc. No entanto, Ícaro deve ficar atento exatamente para não ceder a este tipo de tentação, pois uma linha tênue o separa deste tipo de atuação.
Outro aspecto que merece atenção redobrada é quanto ao uso de “cacos” durante as apresentações. Comparada a primeira vez que assisti a esta montagem (por volta de um ano atrás no anfiteatro dos Tajás, localizado do Casarão dos Bonecos) a quantidade de pequenas improvisações em cena me surpreendeu, exatamente pelo fato de estarem lidando com uma dramaturgia muito bem delineada e formatada. As pequenas improvisações que ocorreram foram bem-vindas e não comprometeram o andamento do espetáculo; mas neste caso a linha é muito mais tênue e perigosa, pois pode colocar em cheque um dos pilares de sustentação da peça, sua dramaturgia. Importante dizer também, que o deboche impagável do “caco” referente ao curso de Licenciatura Plena em Teatro da UFPA, só teve seu resultado positivou e imediatamente constatado na platéia, exatamente pela constituição peculiar daquela platéia que em boa parte era composta por alunos e professores da instituição citada. Fica a advertência: “cacos” são bem-vindos, desde que não comprometam a unidade dramática do espetáculo e não se dirijam a um seleto grupo de espectadores.  
Encerro minhas impressões sobre a apresentação compartilhando uma inquietação. O desenlace da peça ficou comprometido em função da supressão ou modificação de uma ou mais cenas finais. A principal cena em questão apresentava o momento em que a recém Trupe, formada pelo personagem Satyr, depara-se com seu líder aparentemente adormecido sobre uma pedra. Por conhecerem o espírito brincalhão e zombeteiro de seu mestre todos, a princípio, pensam tratar-se de mais uma pilhéria do irreverente fauno. No entanto, aos poucos vão constatando que Satyr não se encontra mais presentes entre os vivos.
Identifico nesta cena uma das principais peripécias dramáticas do espetáculo, pois desde o início somos cativados pelo caráter anti heróico do protagonista, isto é, por Satyr. A sedução que Satyr opera nos personagens da fábula se estende para o público pelo processo de empatia muito bem arquitetado ao longo da montagem. Quando a trupe se vê completa e pronta para rumar em busca de aventuras, a vontade é de partir com eles integrando-se a caravana e deixando pra trás o fardo de nossos valores hipócritas e opressivos. O choque provocado por esta cena, portanto, nos anuncia o fim do sonho, a impossibilidade de transgredir e subverter todos os valores que nos condicionam numa vida mesquinha e sem sentido. Se o espetáculo terminasse aqui teríamos uma espécie de lição moral muito bem delineada comunicando que não se pode viver irresponsavelmente – trapaceando, gozando dos vícios e dos prazeres, mentindo ou cometendo todos os tipos de excessos – sem que sejamos confrontados a prestar contas de nossos atos. Uma espécie de sumula cristã. Felizmente o desfecho da peça não é este. Satyr visita o mundo dos mortos e de lá consegue regressar valendo-se exatamente de seu caráter anti heróico – ele também trapaceia as entidades do outro mundo. Constatamos que sua morte é parte de um plano que pretende selar de vez os rumos de sua trupe: a aquisição da mascara – elemento mais que simbólico para uma trupe de teatro.
Se pretendermos aprender alguma coisa com esta peça, portanto, não será um ensinamento cristão, mas sim uma ode ao espírito libertário dos artistas que por seu caráter transgressor são capazes de enganar as próprias divindades.
O problema a meu ver é que a adaptação realizada nas últimas cenas compromete não somente o entendimento destas questões, mas fundamentalmente, compromete o clímax do espetáculo. Ao suprimir exatamente a cena onde se dá o encontro entre a trupe e seu líder morto, para no seu lugar apresentar uma cena onde todos sentem a falta de Satyr e então, presumem que ele morreu, os argumentos desta conjectura soam no mínimo inverossímeis. A conseqüência imediata é o enfraquecimento do drama particular de Satyr como pode ser constatado no breve resumo que faço das cenas finais a seguir: Satyr deve oferecer a vida de um dos membros da trupe como preço pelas dádivas que conquistou até então; ele escolhe tirar a própria vida por não ter coragem de escolher um dos seus; imediatamente o vemos confrontando uma entidade no mundo dos mortos, momento em que conseguirá trapacear e afanar uma mascara conseguindo também descobrir um meio de retornar ao mundo dos vivos.
Ora, encadeando os acontecimentos deste modo o sentimento de perda de ambos – Satyr e para com a Trupe e vice-versa – fica enfraquecido. Em primeiro lugar, a trupe quase nem chega a sofrer pois imediatamente descobre que seu líder retornou; em segundo lugar – e este é o principal aspecto da questão – a resolução de Satyr  tirar a própria vida não implica numa perda, pois a sequencia das cenas insinua que este ato faz parte dos seus planos, portanto, já sabemos, ou pelo menos suspeitamos que ele irá regressar de alguma forma. Esta é a principal questão que deve ser revista na atual montagem, um problema que deve ser analisado considerando fundamentalmente os arranjos propostos pela encenação deste belo trabalho.
Edson Fernando 10.06.2013   

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