Espetáculo: Animalismo
– A nova ordem mundial.
Montagem do GTU –
Grupo de Teatro Universitário da UFPA.
Credenciais
do autor da crítica: Edson Fernando - Ator e diretor Teatral, Prof. de Teoria
do Teatro da ETDUFPA, atua no COLETIVO DE ANIMADORES DE CAIXA e como
pesquisador no GITA – Grupo de Investigação do Treinamento Psicofísico do
Atuantes.
Humanos
enjaulados. A imagem que se apresenta ao fundo do palco choca e remete
imediatamente a questão central da montagem: o quanto de animalismo tem a
humanidade? O olhar fixo dos cerca de quinze atores dentro da jaula espreitando
os espectadores na entrada do espetáculo oferece o espelho cruel para que cada
um reflita sobre a questão. Por tão semelhantes, olho para os atores – que ali
representam animais – e vejo a face desumana do homem; olho para o humano e reconheço
a face perversa do porco Napoleão. O jogo entre estas aparentes bipolaridades
ergue uma interessante dialética poética que sustenta todo o argumento de Animalismo – A nova ordem mundial: é a humanização
dos animais que gera desequilíbrio, desigualdade e violência; não obstante, é o
animalismo dos animais – pleonasticamente falando – que conduz ao derradeiro
drama da fábula. Já não consigo mais saber quem é humano e quem é porco; resta
apenas a certeza vacilante e desalentadora: a humanidade é porca.
Estabelecida
nestes termos é impossível não perceber a encenação dialogando aberta e
diretamente com o momento histórico de agitação política que varre o país deste
as manifestações de Junho. Mesmo o espectador mais desatento e desavisado é
confrontado com referencias explicitas às demandas de Junho. Exemplo disso é o
cartaz que as Galinhas portam em sua cena de protesto contra o porco Napoleão,
uma parodia de um dos lemas do Movimento Passe Livre: “Não é pelos vinte centavos,
é pelos ovos”.
No
entanto, o que dá vigor na montagem não são as referencias diretas a nossa
conjuntura e sim nas sugestivas metáforas dos papeis sociais que os animais
desempenham na trama. E neste sentido, uma das mais fortes é o papel dos Cachorros.
Mais do que simplesmente explorar a imagem do cão como guarda, nos deparamos
com a imagem do aparelhamento militar e repressivo do estado. Insanos e
sedentos de agressividade – como os PMs que reprimiram as primeiras
manifestações populares de Junho – esses cães simplesmente vociferam seus
gruídos ecoando o sem sentido de sua ação repressiva. Aliás, a pretexto de
manter a ordem e a preservação do patrimônio público a ação militarizada do
estado brasileiro sempre abusou do uso excessivo da força – seja na repressão
aos movimentos sociais, seja no modo preconceituoso e truculento como atua com
a classe pobre do Brasil. Assim, os Cachorros da fábula em questão cumprem
exemplarmente seu papel de carrascos repressores não poupando esforços para
conter o levante das Galinhas. A tática é simples: encurralar e reprimir a peso
de cassetetes e gás de pimenta. Difícil é dizer quem se locupleta com tamanho
sadismo: os Cachorros do porco Napoleão ou os animais uniformizados – mais sem
identificação – dos porcos disfarçados de estadistas.
O
galinicídio encerra a participação
canina com requintes de crueldade. Se na forma, a morte impiedosa da galinácea
alude tragicamente às câmaras de gás nazistas, no conteúdo infelizmente a
tragédia é bem mais próxima de nós, como no caso do massacre dos dezenove
membros do Movimento Sem-Terra ocorrido em Abril de 1996. Em ambos os casos –
no primeiro num estado totalitário e no último num estado democrático – o braço
armado do estado agiu impiedosamente; e no caso local os cento e cinqüenta e
cinco policiais envolvidos seguem impunes. O estado não só late como morde
ferozmente, tal como os cães de Napoleão.
Se
a metáfora dos cães encontra sonoros ecos com nossa sociedade o que dizer da
retórica dissimulada do porco Garganta? O ardiloso Garganta é o braço direito
do suíno Napoleão. Aliados primeiramente com Bola de Neve, os três porcos
lideram a revolução contra os humanos, vencem Jones – espero que a grafia
esteja correta – assumem o controle da granja e instalam os sete mandamentos do
Animalismo. Mas se num primeiro momento temos a máxima “Quatro pernas bom, duas
pernas ruim”, ideologia defendida por Bola de Neve opondo humanos e animais,
logo a disputa pelo poder entre os próprios animais dará a vitória ao porco com
nome de imperador. Garganta exerce papel decisivo para consolidação do novo
líder, pois é ele quem convence o coletivo dos animais, dissimula e manipula os
fatos e traça acordos políticos escusos com os antigos inimigos, os humanos. Trágica
coincidência com nosso sistema político eleitoral vicioso, repleto de
corporativismo e ideologias vãs. O nível de desfaçatez atingiu patamares tão
absurdos que dificilmente o porco Garganta conseguiria sobreviver em meio as
nossas raposas do Congresso e Senado Federal, mas também de nossas Assembléias
Legislativas locais. Se tornaria ainda alvo fácil para estas raposas
profissionais ou teria certamente elevada concorrência com as aves de rapinas
que também povoam aquelas casas.
Na
abordagem técnica da montagem merece destaque o trabalho de pesquisa das
posturas corporais para composição de cada papel dos animais. As bases
corporais que sustentam o papel das galinhas, cabras, égua, cavalo, ovelhas,
porcos, urubu e cachorros – espero não ter esquecido nenhum animal – primam
pelos detalhes nos dedos das mãos e na sustentação do peso na meia ponta. A
curvatura da coluna vertebral e o trabalho de equilíbrio do corpo desenvolvido
pelo elenco impressionam pela naturalidade e desenvoltura em cena durante quase
duas horas de trabalho.
No
entanto, reservo-me o direito de compartilhar minhas inquietações com alguns
elementos da montagem. Primeiramente a questão dos intervalos. Embora reconheça
que a montagem siga uma estrutura épica, o primeiro intervalo me pareceu
desnecessário, pois ele ocorre ainda no decorrer das primeiras ações da peça.
Fiquei com a impressão de que a direção objetivou informar ao espectador, logo
no início, que se tratava de uma montagem com orientação para o teatro brechtiano,
mas a pouca naturalidade do elenco no momento do intervalo – aproveitam para
beber água – faz o procedimento recair num formalismo desnecessário. Bem
diferente de outro momento na parte final da montagem em que o elenco
interrompe as ações, abandona as posturas corporais dos animais para em seguida
retomar o andamento da cena, tudo com compasso marcado a partir da trilha
incidental feita pela banda ao vivo. Diferente também das intervenções feita
pelos narradores, momento que o elemento novamente interrompe o fluxo das ações
da peça. Então, penso que é possível e perfeitamente adequado a montagem estes
momentos de quebra da quarta parede, mas procurando evitar os formalismos e os
excessos.
A
cena musical da Cabra alfabetizando os demais animais valendo-se do recurso
didático de uma canção com batida brega ou tecnobrega também me deixou
inquieto. Compreendo o deboche que a cena provoca com o próprio movimento em
voga no estado, mas também não posso deixar de pensar que nenhum lugar esta
livre dos ditames da indústria cultural. Já somos bombardeados insistentemente
pelos meios de comunicação de massa com as musicas chicletes de duplo sentido e
danças de apelo sexual. E parece que só conseguimos formular uma crítica a
isso, reproduzindo a mesma formula absolutamente desgastada pela própria
indústria; ficamos somente na paródia. Não conseguimos enfrentar as engrenagens
desta indústria oferecendo uma coisa nova, ácida, questionadora; então, caímos num
ciclo vicioso, pois fazemos girar as mesmas engrenagens que criticamos.
Estas
inquietações de forma alguma pretendem ofuscar o valor da montagem. O trabalho
dirigido por Marcelo Andrade, aluno da Licenciatura em Teatro da UFPA, tem o
mérito inquestionável de dialogar de forma criativa e perturbadora com nossa
conjuntura política. A montagem do Grupo de Teatro Universitário (GTU) que é
uma ação do projeto Novos Encenadores
tem ainda o mérito de proporcionar espaço para a experimentação teatral, no
melhor sentido da acepção.
Por
fim, uma última reflexão. A cena final nos convida a ultrapassar os limites
estabelecidos entre a ficção e realidade: o elenco inteiro invadi o palco
munidos de cartazes com a demanda pessoal de cada um. É uma reivindicação dos
animais ou dos atores? Pelo teor peculiar das frases, certamente trata-se de um
posicionamento do elenco diante das mazelas da nossa sociedade: Mais direitos,
Menos Feliciano; Abaixo a ópera, queremos cultura popular; Fora Paulo Chaves.
No entanto, o grito expresso nos cartazes continuarão aprisionados na ficção se
não ultrapassarem a porta do Teatro. Qual o lugar e o tempo da revolução que
queremos?
Edson Fernando
07.09.2013
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