quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Cançada, excessivamente Maura, ao largo de Deus. Performance - Por Rosilene Cordeiro.

Rosilene Cordeiro: Atriz performeira, realizadora de cena entre a urb, os campos, rios e matas da grande floresta.

“Significava que só uma psicose, em todo seu esplendor,
poderia consumar a longa greve que tinha sido toda sua vida”.
(Samuel Becket, citado na abertura de O sofredor do ver. Maura Cançado. Contos. 1968)
....................
Aqui estou de novo nesta "cidade triste", é daqui que escrevo. Não sei se rasgarei estas páginas, se as darei ao médico, se as guardarei para serem lidas mais tarde. Não sei se têm algum valor. Ignoro se tenho algum valor, ainda no sofrimento. Sou uma que veio voluntariamente para esta cidade — talvez seja a única diferença. Com o que escrevo poderia mandar aos "que não sabem" uma mensagem do nosso mundo sombrio. Dizem que escrevo bem. Não sei. Muitas internadas escrevem. O que escrevem não chega a ninguém — parecem fazê-lo para elas mesmas. [...] estou no Hospício. O desconhecimento me cerca por todos os lados. Percebo uma barreira em minha frente que não me deixa ir além de mim mesma. Há nisto tudo um grande erro. Um erro? De quem? Não sei. Mas de quem quer que seja, ainda que meu, não poderei perdoar. É terrível, deus. Terrível faz muito frio. Estou em minha cama, as pernas encolhi­das sob o cobertor ralo. Escrevo com um toquinho de lápis em­prestado por minha companheira de quarto, dona Marina. O quarto é triste e quase nu: duas camas brancas de hospital. Meu vestido é apenas o uniforme de fazenda rala sobre o corpo. Não uso soutien, lavei-o, está secando na cabeceira da cama. Encolhida de frio e perplexidade, procuro entender um pouco. Mas não sei. E hospício, deus — e tenho frio
(Maura Lopes Cançado[1]. Hospício é Deus. 1965. Grifos nossos).

[...] Quarenta e oito anos me separam de Maura e a publicação de seu primeiro livro. 2013 foi nosso ano inaugural, primeiro contato meu com a obra, em que fomos apresentadas, literariamente. Exatamente ali no ano de 2013, no momento em que o ator e meu amigo há quase uma década, Denis Bezerra[2], me apresentou um texto em 30 páginas pedindo que eu lesse com carinho e depois me pronunciasse quanto a ele. Denis, já se confessava encantado com o que acabara de ler, mas desejou saber minha opinião. Havia, inclusive, naquela mesma ocasião, naquele gesto entre amigos leitores-atores a sinalização da possibilidade de interpretá-lo sendo dirigida por ele, posteriormente. Isso, por ser, digamos, uma pessoa na qual ele apostava ‘alguns tostões’ para dar vida a tão rica presença; vida cênica a uma genialidade que envolvia a personagem Maura, em seu discurso solitário de muitas vozes, que a revelava em cada trecho descritivo de sua narrativa insalubre e fétida pelo lastro que deixava em nós, seus leitores desavisados.
O texto, uma adaptação do livro Hospício é Deus, da escritora Maura Lopes Cançado, realizada pelo escritor, (poeta) paraense Ney Ferraz Paiva, apresentada diretamente ao Denis Bezerra, para uma montagem cênica a ser desenvolvida como ação integrante da programação do Colóquio Blanchot, ocorrida em Belém-PA, no mesmo ano. Daí estabelecemos um pacto cavalheiresco, e neste primeiro aparecimento foi exatamente isso que fizemos: uma apresentação artística para composição de um evento literário. Ele atuando e eu o “dirigindo” como ele gosta de pensar.
À primeira impressão, a sensação que decorre é a de invasão, mesmo, o estranhamento pela pureza e minúcia de detalhes que cercam o relato da autora. Um escrito direto, sem rodeios, cru, de uma crueldade fabulosa e fabulante pela simplicidade e clareza com que ela vai descrevendo a mente, o viver e o sentir ‘daquela’ mulher por vezes sombria e atormentada, mas tão lúcida em insanidade, tão delicada, forte, tão bem lapidada pela dor que, na verdade, não é outra senão ela mesma atravessada pela autobiografia surpreendente de seu estado de paciente no hospício que a acolhera até o findar da vida. Sedutora e inquietante, refiro-me, ainda, ao texto que ao meu ver é, ao mesmo tempo, uma vontade de entrega e negação, na mesma ordem em que vai nos desorganizando orgânica e simbolicamente, conseguindo preencher esse vazio largado por dentro da alma, vontades antigas de experimentar uma densidade mais fria e experimental em teatro, chegando, inclusive, a romper com ele enquanto literatura.
A literatura o prendia, igualmente, talvez nem fosse para teatro (pensava eu àquela altura). Mas o fato é de que se tratava de uma textualidade reveladora de uma realidade, muitas vezes, ignorada vivencialmente: a loucura nossa de cada dia (não dramatúrgica e altamente dramatúrgica, se é que me faço entender!), à qual qualquer ator pesquisador com forte gosto pela literatura de qualquer natureza se dobraria sem esforço, num certo percurso mais amadurecido da carreira, assim, num jogo abismal, sem qualquer resistência, num gesto de candura e doação.
Interessante como sua escritura, quando pensada cenicamente, é feminina e livre pela forma com que se desprotege gramaticalmente, rasgando qualquer tratado de relação classicista com estilo literário, teatral, social ou de gênero, pela visceralidade depravada e animalesca de um ser que vai diluindo-se nas palavras sem qualquer compromisso ético ou estético com seu tempo e sua condição de inter-NADA. Ela mesma declara que não tinha essa compreensão poética do que escrevia. Para Maura, tudo que escrevera foi dor, sua própria vida.
Uma mulher em conflitos pessoais, sem amarras, estando totalmente subjugada a um sistema que a declarou louca, isolando-a do que lhe restou do mundo, nesse trabalho com Denis Bezerra, vira única condição à qual a persona Maura, da escritora Maura Cançado está sujeita (porque aqui estou agora a me referir à cena): a vontade que a move para dentro desse abismo de tanto e de nada, com o derradeiro propósito de apenas Ser e lançar-se ao tempo da escrita, [para nós, o tempo da cena] que para ela, sequer, seria elevado ao status de livro, muito menos espetáculo. Uma mulher ignorada e nenhum pouco ignorante, revelando-se ao mesmo que re-definINDO esse lugar da palavra “que instaura os discursos” cênicos na imaginação dos espectadores-leitores, que ela toma como sua apresentação pessoal em uma carta de liberdade sem tempo, sem controle, mas muito bem localizada: compilada em hospício, reportada a precariedade e ao confinamento no qual passou os últimos e tenebrosos momentos de sua existência terrena, o mesmo que nos atormenta e deprime só de imaginar.
Dramaticamente, pode-se dizer que esse é um trabalho artístico técnico-residual sobre esse exercício gostoso entre literatura, teatro, dramaturgias pessoais e performance que, ora nos comprime, ora nos dilata, atirando-nos a todos, a todos os lados: sobre o seu período de internação no Hospital de Engenho de Dentro, do qual relata a si mesma, uma paciente na impaciência, em excessos e excedência de ver. Sobre Denis, em sua ‘eterna’ busca, pessoais e artísticas, nesse momento concentrado em memórias cênicas, história e teatro; sobre mim nessa rota incerta, imprevisível entre cena e vida, nessa fresta numinosa  que nos cega, ao mesmo que aclara a visão: do que temos, quem somos e o que queremos com a nossa arte.
Espelhos, sombrinhas, tecidos, lanterna, cartas... papéis aos montes, dispersos pelo palco do mesmo modo que espalhados por dentro dela para desvendar o mundo como exímia amazona da loucura quixoteana, poeta de seu próprio ser, salvadora de seu florescer, reinventar-se para não morrer.
E havia de ser o Ator Denis Bezerra que encerraria essa missão a quatro mãos, inicialmente: um texto de mulher, reescrito por um homem, “dirigido” por uma mulher, en-cena-do por um homem, o que, àquela época resolvemos fazer. Hoje o trabalho é dele, deixo bastante claro! De lá pra cá estão três anos de uma pesquisa performativa de fundura não mensurável em palavras. Muitos encontros, várias indagações, descobertas e perdas, muitas perdas. A primeira é aquela que fizemos ao romper com a adaptação e mergulharmos na integralidade do texto literário, no livro Hospício é Deus com maior propriedade e desconfiança, em adentrar o hospício de Maura e os nossos. A segunda se dá ao optarmos pela performance por compreendermos que Maura, de tão boa torna-se fugidia, escorregadia, disforme, reinventando-se em cada intervenção. O teatro a levaria de novo ao quarto no qual descreve, sucessivas vezes, sentir frio e estar só. Esse é um trabalho para ser com-partilhado com as ilhas que somos.
Maura Lopes Cançado, cançada de Deus ou apenas “Maura”, como hoje a intitulamos é, portanto, essa reverberação da insanidade clara como o dia, a dela, a dele, a minha, a nossa; da nossa loucura diária, da loucura e do hospício do Denis (brilhantemente vivida no interior desse período de pesquisa e de escrita de sua tese, na construção do seu doutoramento como amante pesquisador que todos sabemos que ele é; de professor e ator dedicado, apaixonado pela literatura, como todos sabemos e aprendemos a conhecê-lo; como artista re-descobrindo-se e reencontrando a cidade onde vive nos espaços onde se apresenta e pela qual milita estudando-a e compartilhando-a pelas cenas da memória). Um trabalho acompanhado por mim, seguindo, perseguindo-o, observando-o, conversando com ele nesse pisar inseguro, irregular, caminhando para sua 6ª [a]presentação, fugindo e aprisionando-nos mais e mais a ela, tragando-nos para dentro de si Deixando-a ir ditando os caminhos por onde seguimos e que vamos esquecendo para vermos os que ainda estão por vir.
O trabalho compôs a vasta programação que integrou a “Instalação Performática MEMÓRIAS, RETALHOS E FIOS: cenas teatrais em Belém do Pará”, do Denis Bezerra e penso que brinda um momento importante em nossas carreiras: a do Denis Bezerra como atuante, retornando à cena artística depois de alguns anos dedicados à pesquisa acadêmica e a minha como essa pessoa errante, aprendente de cena, cada vez mais inconformada e co-movida pelos estudos da Perfomance, ‘casando’ com ele nessa proposta cênica. Uma rastreadora de possibilidades em conflitos, uma observadora de fechadura, num inconformismo desejoso, feliz e sem tréguas dessa arte que de ser, já foi, que de ser em ser e ir em ir, sempre volta, sempre única, sempre outra, numa lesão em cada golpe que nos deixa em ato.
Maura seria, então, essa faca de duplo corte: um que nos pune em cada ato, outro que nos salva em cada marca, como esta que vai nos deixando cada vez que surge e desaparece nessa imensidão de imagens sem fim que vão surgindo e sumindo na névoa que deixou em nós, em nossos quartos brancos ‘nos quais ficamos incomunicáveis’, só nós nos sabemos. E disso, me sinto, particularmente, contemplada e encantada e, porque não dizer, bastante satisfeita, uma co-realizadora participante, feliz. E, com certeza, meu único ‘papel’ ou minha maior alegria foi contemplar seu aparecimento, vê-lo crescer, conversar com ele, me emocionar e aprender com ele na pessoa desse jovem atuante. E como ele foi fundo... Bem vindo, caro ator, aos Estudos da Performance! O recebo e saúdo com a intranquilidade, a insatisfação e a incompletude com que os seguidores dessa importante linguagem artística conhecem tão bem, atributos sem os quais não estaríamos hoje aqui.
Rosilene Cordeiro
10 de Agosto de 2016
FICHA TÉCNICA:
Performance Maura.
Atuante: Denis Bezerra
Acompanhante artística de percurso: Rosilene Cordeiro
Objetos em cena e figurinos: Denis Bezerra
Vídeos, imagens e projeções: Denis Bezerra, Rosilene Cordeiro
Texto original (inspiração livre):Maura Lopes Cançado







[1]Maura Lopes Cançado, mineira, literariamente surgida no Movimento Cultural Renovador (o instinto suplemento dominical do Jornal do Brasil, no final dos anos 50 ao lado de Ferreira Gullar, Reynaldo Jardim, Assis Brasil e outros contemporâneos notáveis). Escreveu pouco, viveu o bastante para sentir-se só e sofreu o suficiente para sangrar em alguns relatos estarrecedores de interna no ‘cubículo 2’ que ninguém visitava. Um sofrimento salutar para sua escrita autoral, amoral, em Hospício é Deus (romance autobiográfico, um diário literário escrito em 1959 e publicado em 1965, tendo sido considerado um sucesso ímpar pela crítica, um dos melhores do ano), estendido ao livro de contos O sofredor do ver, 1968, nos quais se sagrou uma anônima brasileira sem precedentes.

[2] Ator, diretor, professor e pesquisador de história do teatro no Pará na UFPA como docente e coordenador do Curso de Licenciatura em Teatro. Email: denisletras@yahoo.com.br

Um comentário:

  1. Recentemente escrevi um artigo sobre a infância e a adolescência da escritora Maura Lopes Cançado no interior de Minas Gerais. Para quem se interessar, aqui está o link, para dowload:
    http://perquirere.unipam.edu.br/documents/1833550/2013121/Maura+Lopes+Can%C3%A7ado+entre+mem%C3%B3rias+e+experi%C3%AAncias.pdf/46617518-2af6-4ab9-9cb8-2a4c5873ffa7

    ResponderExcluir