segunda-feira, 22 de agosto de 2016

A linha tênue entre o absurdo e o real – Por Raphael Andrade.

Raphael Andrade: Ator, Graduando da Licenciatura em Teatro da UFPA.

O coletivo de Teatro “Palha” – 35 anos de história, trouxe à cena, de forma gratuita, três clássicos dos fundadores do “teatro do absurdo” que tem fortes características do chamado “teatro moderno”, instituído a partir do século XX, pós- segunda guerra mundial. Criado a partir da ruptura do “Naturalismo” cênico que, até então, dominava as convenções teatrais.
Na temporada de 18 a 21 de agosto pude assistir ONDE TERÁS QUE ESPERAR... A partir do recorte do texto "Esperando Godot" (1953) do dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906 – 1989).
Era noite, um grande público estava à espera de adentrar ao teatro – pensei sobre o número de espectadores: a lotação se fazia por ser gratuita, ou por ter a oportunidade de ver um teatro não habitual em terras tupiniquins? Bom, isso são questões que vão além do meu métier enquanto artista desta terra (apesar de já ter uma noção desta análise). Para mim, que já tinha lido o referido texto, não tinha expectativa em torno da obra, por tê-la achada sem nexo e graça. Ainda bem que o hibridismo de formas com que o teatro pode ser feito guarda surpresas agradáveis que aguçam a imaginação.
Ao ingressar no lugar da mise-en-scène, fui transmutado imediatamente para a simbologia dos objetos apresentados – uma colossal-assombrosa-solitária árvore sem vida feita de folhas de jornal que, ao olharmos rapidamente, pareciam pedras rústicas dando um ar sombrio em uma estrada sem começo nem fim, onde a cenografia atende à funcionalidade do que se pretende, aliada ao figurino bem elaborado com ornamentais símbolos de morte/vida e o perfeito visagismo das atuantes, que nos remetia a cadáveres presos no limbo, somados a primeira ação das duas atuantes que com a técnica sonora do gramellot acrescida de gestos, ritmos tensos e ruídos,  nos transportando para um lugar pós guerra e todas as suas mazelas imposta à humanidade. Após este jogo onomatopaico, a narrativa segue com crises existenciais, onde a figura humana perde a própria identidade – apenas vaga para lugar nenhum.
No prólogo, o encenador já nos mostra tantas características simbólicas do teatro do absurdo que, a meu ver, não havia a necessidade das personas se comunicarem na linguagem habitual – já bastava-nos a sonoridade do gramellot para entendermos os acontecimentos que a peça nos quer expor, mas entendo que seria de mau entendimento para quem não soubesse nem o prefácio da obra literária.
No primeiro ato, contracenam apenas dois personagens “Didi” e “Gogo” dois personagens com um corpo extracotidiano e sofridos quase grotesco à espera de Godot (não se sabe o motivo pela espera). Neste exausto diálogo sem nexo, com pequenos traços estilísticos da tragicomédia nas “brincadeiras mórbidas” de risível acidez expressam o “sentido do sem sentido” da condição humana e a amarga interiorização das personas ao se defrontarem com o nada e da abordagem não racional – características intrínsecas do teatro do absurdo.
Nesta elaborada concepção cênica, tudo estava milimetricamente organizado – a sonoplastia que a partir dos signos sonoros remete-nos ao deserto com sons de grilos ou do pêndulo do relógio, ou nas sutis modulações do desenho das luzes – ora dia; ora entardecer; ora noite. Apenas o ruído do strobo me tirou a atenção da encenação. Quando as ações cênicas davam um ar de enfastiante (temos a péssima pretensão de saber rapidamente o desfecho da peça), o segundo ato se desenvolve e muda o foco com a entrada de duas personas, uma delas escravizada com seu “senhor” acima de sua carcaça exaurida. Reflito: a sujeição a qual uma pessoa “pertence” a outra era para ser algo impensável, um absurdo. Nesta perspectiva, estamos de tal maneira imersos no conto abordado que nos parece, por vezes, algo normal frente a todas as angústias que os personagens nos revelam nesta crise existencial fronteiriça da contemporaneidade – fome, (des)caminhos, escravidão, medo, solidão, doenças corporais e da mente, guerras, vazios e chagas arraigadas nesta sociedade que pretende fugir desta existência sem prospectiva. Seria esta teatralidade uma linha tênue entre realidade e absurdo?
 A narrativa se estende com a revolta do escravizado, que de tanto apanhar e ser humilhado, muda a regra do opressor e o oprimi. Mas não aguenta o fardo pesado de suas dores e desfalece. Apagam-se as luzes da ribalta, permanecem em cena “Didi” e “Gogo”, como se nada tivessem presenciado, continuam sua busca incessante por Godot, até a entrada de um garoto com aspecto natural na sua bicicleta, referindo que Godot talvez venha amanhã. A espera continua, o luminoso efeito dos sapatos retirados das mãos e posicionado em frente aos pés, responde-nos muitas perguntas ou nos fazem calar ao vazio existencial que a humanidade caminha.
Apagam-se as luzes, apenas os sapatos estão iluminados, para onde caminhar?
Raphael Andrade

22 de Agosto de 2016.

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