Espetáculo: Raça
Vira-lata
Montagem do GTU RUA –
Grupo de Teatro Universitário de Rua
Ator e diretor Teatral, Prof. de Teoria do Teatro da ETDUFPA, atua no
COLETIVO DE ANIMADORES DE CAIXA e como pesquisador no GITA – Grupo de
Investigação do Treinamento Psicofísico do Atuantes.
O
cortejo com aproximadamente quinze figuras maltrapilhas entoando melodicamente
alguns jargões consagrados na zona periférica da cidade de Belém, percorre os
corredores da Praça da República no final da tarde. A cantoria segue embalada
pelo ritmo percussivo de baldes e tampas de latas ecoando pelos quatros cantos
do logradouro e atraindo atenção e curiosidade dos transeuntes presentes. A
frente da procissão vemos a única figura – por hora – mascarada conduzindo um
carrinho de supermercado com alguns produtos para comercialização: balinhas,
picolés, garrafinhas de água mineral e o famoso salgadinho do “Croc croc croc”.
Com ginga e lábia de vendedor de rua o franzino mascarado aborda alguns
passantes tentando obter sucesso no seu empreendimento informal. Sem o retorno
desejável o mascarado segue liderando o cortejo rumando ao tradicional
anfiteatro da praça. Embora tudo indique que a caravana de maltrapilhos se
assentará no local destinado aos artistas de teatro de rua, uma manobra súbita
conduz todos ao grande corredor localizado em frente ao monumento erguido em comemoração
ao primeiro aniversário da implantação do regime republicano no Brasil (1890). É
exatamente este o lugar escolhido pela Raça
Vira-Lata para sua estréia nos palcos da cidade.
Trazendo
no título a expressão que soa forte (Raça Vira-lata) a montagem não deixa
dúvidas acerca do lugar escolhido para fundamentar seu processo criativo: o
submundo marginal que abriga toda sorte de personas
alijadas da convivência e dos estatutos de nossa sociedade civil – digo persona e não personagem me remetendo a
linguagem escolhida pela montagem para desenvolver sua encenação, isto é, a máscara,
assunto que abordarei mais a frente. Dentre estas personas, identificamos imediatamente a prostituta, o mendigo e o vendedor
ambulante; outras personas – como o
rei da rua, o seu capanga, alguns atormentados mentais, o casal hippie, o
delinqüente menor de idade – serão reconhecidas ou apresentadas no decorrer da
fábula que delineia o quadro social que pretende ser retratado. Assim, pela
constituição das personas que povoam
a dramaturgia da montagem destaco como extremamente feliz e emblemática opção
por não apresentar a montagem na tradicional semi-arena do anfiteatro: esta
opção dá as costas para o local convencionado a arte de rua, convenção
outorgada e fantasiosamente gerenciada pela Secretária do Meio Ambiente (SEMA),
órgão da prefeitura municipal de Belém. Dar as costas para este anfiteatro soa,
em primeiro lugar, como um provocativo e irônico deboche endereçado justamente
ao órgão competente pela manutenção e preservação daquele espaço público que,
no entanto, notabiliza-se pelo desleixo como trata as praças como um todo e
pela polêmica e indevida cobrança de taxa para utilização do mesmo (anfiteatro)
por parte da classe teatral. Em segundo lugar, dar as costas ao anfiteatro
situa estas personas no lugar
consagrado a elas pela própria sociedade, isto é, a marginalidade. É sobre este
lugar marginal (o submundo dos marginalizados) e neste lugar marginal (corredor
em frente ao monumento a República) que a trama dos fatos é construída e será
apresentada.
A
dramaturgia apresenta uma estrutura simples assentada numa intriga simples e
desenvolvimento linear: as personas
do submundo retratado são oprimidas pelo Rei da rua que controla quem pode e
não pode trabalhar e conviver na região (gueto). Seu Capanga assegura o
cumprimento do denominado “dez mandamentos do Rei da rua” recorrendo ao uso da
força. Mendinigth – o mascarado que lidera o cortejo na chegada dos atores na
praça – um vendedor ambulante, insatisfeito com os mandamentos propostos, pois
eles afetam diretamente sua venda informal, trama a morte do opressor. Para
tanto, convence Mendigueiro – um mendigo com retardo mental e dificuldade na
fala – a participar de seu plano que consiste em envenenar a sopa que é
distribuída como “benfeitoria” pelo Rei da rua. Mendigueiro é convencido a
colocar o veneno e provocar o Rei da rua a provar um pouco da sopa; desconfiado
de uma trapaça, o Rei da rua força Mendigueiro a tomar a sopa, ocasionando sua
morte.
As
críticas que reservo a dramaturgia não recaem sobre a simplicidade da estrutura
dramática desenvolvida, mas sim ao não aprofundamento das personas que compõem a fábula. Interpelo para aprofundamento desta
questão: as motivações de Mendnigth são meramente econômicas? A relação de cumplicidade
entre o Rei da rua e seu Capanga se assenta no quê? Mendigueiro se deixa convencer e participa do
plano com quais motivações pessoais? Como o Rei da rua adquiriu este status? Em
última instância, quem são estas pessoas que habitam este mundo marginal?
Estas
questões preliminares me deixam com a impressão de que o quadro social
retratado na fábula apenas reproduz um sistema de opressão que pode ser
localizado em outras instâncias da sociedade como, por exemplo, entre patrão e
empregado. Nenhum problema em chegar a esta constatação, mas ao enfatizar este
aspecto perde-se a chance de contar a história destes personagens, apresentando
sua visão do mundo e sua forma de lidar com as vicissitudes da vida. Como
pensam os que têm seus direitos completamente aviltados pelo sistema excludente
que rege nossa conduta social e que nos impede de reconhecê-los como seres
humanos? Como se dá o processo de degeneração da dignidade humana que ocasiona
o surgimento de uma horda de marginais? Resta dignidade a estas pessoas?
Ao
deixar estas questões de lado a dramaturgia dá margem para uma abordagem
estereotipada e sem consistência dramática. Conseguimos identificar as personas por seus maneirismos gestuais e
verbais, mas este, infelizmente, é o lugar recorrente de quem aborda a temática
marginal com pretensões limitadas a chacota, ignorando ou fazendo-nos ignorar
uma realidade grave e alarmante que coloca em risco o convívio social nas
grandes metrópoles brasileiras. Certamente esta não é a intenção da montagem,
muito menos da dramaturgia, então, vale a pena o exercício da autocrítica e a
revisão do perfil traçado para estas personas, assim como da própria fábula. Como
contribuição, apresento a seguir um autor que pode ajudar, pois soube como
ninguém abordar a temática marginal.
Na
dramaturgia brasileira, um marco referencial importante que pode ser tomado
como parâmetro, sem dúvida, é o santista Plínio Marcos (1935 – 1999),
considerado o primeiro dramaturgo a dar voz e protagonismo à classe marginal. Entre
seus mais notáveis textos vislumbramos em Barrela
(1958), Dois Perdidos numa noite
suja (1966), Navalha na carne (1967),
O Abajur lilás (1969) e A mancha roxa (1988), uma realidade
apresentada e tematizada sem filtros literários, isto é, sem nenhum embelezamento
ou mascaramento formal da realidade. Sua dramaturgia funda-se numa espécie de
texto-documento apresentando o recorte de uma situação tirada do cenário
original. Assim para manter a verossimilhança do contexto de onde se localiza a
cena, o linguajar de seus personagens segue reproduzindo fielmente os
palavrões, gírias e expressões populares e peculiares. No entanto, nada é
gratuito, pois nos deparamos com uma dramaturgia que enreda os personagens – prostituta,
cafetão, mendigos, homossexuais, presidiários – numa situação-limite que nos
permite flagrar o estado de desumanidade que os assola; eles têm consciência
deste processo de coisificação que os atravessa e isso gera invariavelmente
revolta e tristeza. Assim, a dramaturgia pliniana nos presenteia com
personagens com intensa carga subjetiva em seus atos e comportamentos. Em Navalha na carne, por exemplo, o drama
da prostituta Neusa Sueli, do gigolô Vado e do homossexual Veludo nos é
apresentado sem véus; a relação entre os três é tensa, violenta, repleta de
gírias, xingamentos e palavrões. Mas ao explorar o drama
individual de cada personagem – suas motivações, angústias, falta de
perspectivas, revoltas e tristezas – Plínio nos permite ultrapassar os
estereótipos e perceber a dimensão ética que a fábula aborda. O modo como
falam, andam e os demais maneirismos se tornam, assim, traços estilísticos da
dramaturgia, e embora tenham função relevante, não são os elementos
estruturantes do drama.
Abordo
agora a questão das personas e dirijo
as reflexões para a atuação do jovem elenco. A montagem optou pelo uso de máscaras
para todos os personagens, elemento de fundamental importância para sua encenação.
Quanto à forma são utilizadas máscara inteira e meia máscara; quanto à
expressão elegeu-se a máscara expressiva com ênfase no elemento bufônico e
grotesco. Esta opção já aponta (ou determina) um caminho para criação dos
atuantes, pois se deve considerar o estatuto próprio deste objeto (a máscara).
Sobre este estatuto mágico presente no trabalho com máscaras Patrice Pavis
(1947) nos afirma que
Escondendo-se o
rosto, renuncia-se voluntariamente à expressão psicológica [...] o ator é
obrigado a compensar esta perda de sentido e esta falta de identificação por um
dispêndio corporal considerável. O corpo traduz a interioridade da personagem
de maneira muito amplificada, exagerando cada gesto: teatralidade e a
espacialidade do corpo saem daí reforçadas. (2005, p.234)
No
século XX autores como os franceses Jacques Copeau (1879 – 1949) e Jacques Lecoq (1921 – 1999) percebendo a natureza
específica desse objeto voltaram suas pesquisas para o desenvolvimento técnico
do uso da máscara por parte do ator. Lecoq dedicará tamanha atenção as suas
pesquisas com as máscaras que em 1956 fundará a L'École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq dedicada a sistematização de suas investigações e
aplicação de um método de treinamento para atores, num curso que exige dois
anos de dedicação.
Esta breve digressão sobre as máscaras é importante
para ressaltar a dificuldade inerente de quem opta trabalhar com elas em cena.
É necessário conhecimento de sua natureza específica e, sobretudo tempo para
exercitar os procedimentos técnicos necessários para dominar o seu uso. E é
exatamente neste ponto que a atuação do elenco deixa a desejar. Considero muito
frágil o trabalho de composição de personagens a partir das máscaras, e pelo
que pude perceber em cena, o que se dá é um trabalho com máscaras e não de
máscaras. Explico: observo que as máscaras são utilizadas como acessórios
de cena, como um adorno que os atuantes levam sobre a cabeça. A rigor não
percebo àquele “dispêndio corporal considerável” de que
nos fala Pavis; observo sim os atuantes desempenhando seus papéis como se fosse
de uma montagem convencional de rua – os deslocamentos, as gesticulações, o
ritmo das falas, etc. – desconsideram o rigor que o objeto deve empreender no
corpo do atuante quando usado em cena. A exceção, neste caso, é o trabalho do
ator Gabriel Cunha desempenhando o papel do Mendigueiro e da atriz Priscila
Costa desempenhando a “velha hiponga” – não lembro o nome da personagem. Mas em
ambos ainda é necessário aprofundar a pesquisa e afinar o tempo de cena de cada
papel, com ligeira vantagem para o trabalho de Gabriel.
Outra
questão semelhante, porém com efeitos mais notórios é a manipulação do boneco
de vara que representa o personagem Rei da rua. O boneco – um rato com
aproximadamente dois metros de altura – é manipulado por um único ator por vez
e possui manipulação no braço esquerdo e na boca. Durante a apresentação três
atores revezam-se no trabalho de dar anima
ao boneco, e nos três persiste o mesmo problema: descompasso entre o texto e a
manipulação da boca. Novamente fico com impressão de que o boneco é utilizado
como um adorno não respeitando a natureza específica da linguagem do teatro de
animação. O descompasso é tão evidente que somos levados a não olhar para o
rosto do boneco e sim para o ator que o manipula. Novamente a questão que se
impõe é o treinamento rigoroso desta linguagem específica (teatro de animação) e
atenção para a natureza peculiar dos personagens representados por bonecos.
Encerro
destacando o interessante modo como a encenação trabalha dividindo o espaço
cênico em duas áreas de atuação: uma área central dentro da arena – lugar onde
se desenvolve a fábula; uma área periférica ao redor e do lado de fora da arena
– lugar onde todos os atores que não participam da cena desenvolvem interação
com o ambiente. As entradas e saídas da área central ocorrem naturalmente por
vários pontos da arena potencializando ambos os espaços. O que há de mais
interessante, contudo, é o modo como os atores estabelecem contato com tudo o
que ocorre ao redor da arena: desenvolvem um verdadeiro trabalho de intervenção
e improvisação com o meio. Nesta área de atuação o trabalho com as máscaras
surte efeito impressionante, pois a ausência de palavras – para não comprometer
o entendimento e desenvolvimento do que ocorre na área central – obriga o
elenco a expressar-se com o corpo inteiro; a magia do trabalho com as máscaras
se faz valer plenamente e cativa àqueles que interagem com os mascarados.
Assim, por vezes, minha atenção é dirigida e demora-se na área periférica de
atuação, pois nela as micro-dramaturgias que são tecidas instantaneamente
revelam-se com alto poder dramático. Neste aspecto, a questão é saber equilibrar
o jogo entre as duas áreas de atuação, para que ambas possam nutrir-se
mutuamente.
Edson Fernando
17.06.2013.