terça-feira, 25 de agosto de 2015

De Vladmir e Estragon à Dama de Preto: No encalço de Godot. Ainda (?).

Autor: Edson Fernando.
Ator, Diretor Teatral e Professor de Teoria do Teatro da ETDUFPA.  

A interrogação proferida de assalto causou surpresa: “Eles vieram com vocês?”. A voz feminina, que não precisa se esforçar para ser sensual, é quem faz a inquisição. A pergunta em si não é o que gera a surpresa, mas sim o uso do pronome na terceira pessoa do plural: Eles. A espera agora é por eles. De imediato suspeito que, por algum motivo desconhecido, havíamos acreditado por muito tempo se tratar de apenas um, quando na verdade seriam dois – ou mais – os misteriosos e ilustres indivíduos dos quais se tem pouquíssimas informações – pra ser exato, somente se sabe o seu nome, Godot – mas em quem depositamos enorme esperança. Godot(s), talvez uma porção deles para nos fazer acreditar que ainda é possível algum fio de esperança.
Essa premissa, no entanto, foi se desfazendo na medida em que entro em contato direto com a Dama de Preto – a dona da voz que me recepciona na entrada – e, pra ser mais exato ainda, quando ela nos permite adentrar no seu universo paralelo. Mas até que isso ocorra efetivamente, a possibilidade dos Godot(s) me cerca e inquieta.    
O primeiro contato com a misteriosa Dama que resguarda a face usando um broche de cabeça com voilette é mediado pelo interfone; relação de contato indireto, o primeiro dos muitos contrastes – e por que não dizer, paradoxos – que serão construídos entre o real e o virtual. Depois da pergunta supracitada, hesito por alguns instantes até confirmar que “eles” estão em minha companhia – acreditando que assim, estabeleço com ela um imediato pacto com o jogo proposto; o portão é automaticamente destravado, permitindo o acesso à escada que levará ao encontro direto com a figura feminina vestida completamente na cor preta. Simpática e muito elegante, portando com altivez uma generosa taça de vinho, ela segue seu rito para com os recém chegados: conduz-me até sua mesa e providencia os ingressos para logo em seguida convidar-me a tirar uma selfie ao seu lado. O ambiente tem pouca luz com um globo espelhado distribuindo a iluminação por todo espaço; a sonoridade é composta por alguns jazz tocados ao fundo mecanicamente – jazz que lembram os bons e velhos filmes noir.
A Dama de Preto passeia pelo espaço – sempre altiva – e em meio às conversas triviais e cotidianas dos que ali se fazem presentes aproveita para pautar com naturalidade o tema que realmente lhe assola: a solidão. Embora com semblante aparentemente resignado, ela persiste na esperança de quê em alguns instantes “eles” cheguem, ou regressem para interromper sua imensa solidão. Mas logo constata que mais uma vez “eles” não comparecerão – pelo menos não naquela noite. Talvez por isso, mais uma vez, reste-lhe somente a alternativa de se recolher ao seu universo paralelo; para um lugar onde tempo e espaço simulam – ou dissimulam (?) – o encontro com “eles” e o encontro consigo mesma. As portas, então, são descerradas e somos convidados a procurá-los – ou nos procurar (?).  
Uma espécie de caverna escura se apresenta. Logo na entrada a direita, duas criaturas trajando roupas completamente pretas e luvas brancas observam desconfiadamente, àqueles que entram; a expressividade da face é ocultada por máscaras brancas de narizes pontiagudos – talvez as mesmas usadas por alguns personagens do Boi de São Caetano de Odivelas. São estes mascarados que quebram com a harmonia futurista dos elementos disposto no centro do espaço: um enorme painel translúcido, uma espécie de monólito totêmico constantemente atravessado por luzes e imagens que se confundem com os próprios mascarados que se encontram quase sempre atrás do painel; a frente do painel um módulo oval vermelho contrasta com todas as paredes escuras – o grande olho nervoso que vigia energicamente todos os visitantes. É necessário atravessar a caverna para encontrar os assentos; a Dama de Preto nos conduz e se acomoda ao fundo – na última fileira de assentos – posicionando na extremidade oposta aos mascarados – longitudinalmente. A porta se fecha dando dimensões gigantescas e soturnas ao lugar.
Imerso na caverna, resta apenas acompanhar passivamente o fluxo constante de imagens fugidias e multicoloridas que vão se avolumando bem a nossa frente sem que se possa capturá-las nitidamente ou mesmo processá-las numa linearidade confortante.  Oníricas, elas provocam nossa imaginação precipitando a mente para uma autorreflexão contumaz. O espaço/tempo é fracionado em dois: Janeiro de 2015 e Junho/Agosto de 2020; passado e futuro colocando em xeque a realidade do presente, questionando-a por meio de constructos criados a partir da potencia poética do círculo e do espelho, ambos tematizados tragicamente a partir da solidão; sim, a mesma solidão que ata os dois mascarados à Dama de Preto. Os três se encontram no mesmo lugar – a caverna – mas não há encontro; ou melhor, o encontro apenas ocorre no início da odisséia imagética quando os mascarados bailam descontraída e desajeitadamente diante do painel totêmico; parecem ter ciência de que o encontro só é possível no simulacro da virtualidade digital; encontro na condição de sombras, pois ao retirarem suas máscaras e revelarem suas verdadeiras faces, o vazio se abre entre eles e, então, novamente encontram-se fadados ao isolamento, ao desencontro, à solidão. 
Subitamente recordo novamente Godot(s) e, então, começo a desconfiar que a Dama de Preto espere na verdade por Vladmir e Estragon; não poderia esperar por Godot pelo simples fato de saber que ele nunca veio e nunca virá; pensá-lo no plural a esta altura me parece completamente descabido. A Dama de Preto encontra-se a espera, portanto, de quem já perdeu a esperança por Godot. Enreda-se desse modo, num ciclo vicioso que imobiliza a todos: Godot não virá não se sabe os motivos, mas ele não veio e não virá; Vladmir e Estragon também não poderão vir, pois embora tenham desistido de esperar por Godot, nada conseguem fazer diante da certeza de que “não há nada a fazer”.
Sentada ao fundo da caverna resta a Dama de Preto contemplar desoladamente apenas as sombras daqueles que há muito tempo cansaram de esperar, mas nada conseguem fazer para sair do círculo, pois reconhecem nele – o círculo – a proteção perfeita para lhes livrar dos males do real; renunciaram ao real refugiando-se no espelho da virtualidade digital. A única liberdade e felicidade possíveis depois da lavagem cerebral.
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Enxertos críticos – Elementos Técnicos
Opção da Montagem: O experimento híbrido de linguagens proposto por Nando Lima desafia a reflexão crítica a pensar por lugares não convencionais para não incorrer num discurso categórico vazio de sentido, posto que ao assumir claramente a opção pelo hibridismo, o trabalho tenciona os elementos formais das diversas linguagens envolvidas operando radicalizações que nos desautorizam a analisá-lo pelas lentes tradicionais. Diretor e atuante na montagem À sombra dos homens ausentes ele define o experimento como Performance.
Articulação e abordagem proposta do Conteúdo: O contexto da situação, de alguma forma, me atou com a atmosfera da primeira peça de Beckett: a rua quase deserta, a recepção impessoal pelo interfone contrastando com a pergunta intimista sobre a vinda “deles”, os procedimentos de aquisição de ingressos intercalados com os selfies com os espectadores que vão chegando, entusiasmo e desalento oscilando subitamente no estado de espírito da Dama de Preto que nos revela pistas frágeis sobre como e onde “eles” estão, revezamento entre atuante e personagem (?) – hora Dama de Preto, hora Pauli Banhos. Somados, estes elementos instauram uma atmosfera absurda – características similares ao Teatro do Absurdo do dramaturgo e poeta irlandês – tal qual a vivenciada por Vladmir e Estragon na deserta estrada rural onde se encontram, próximos a uma única árvore, esperando por Godot. A sucessão de ações dramáticas (?) dentre da sala de apresentação reforça o tema do sentido – ou o sem sentido – da vida sendo colocado na perspectiva das linhas de fuga do mundo virtual. Assim, esta foi a lente que me permitiu me aproximar da montagem para, então, discuti-la e repercuti-la.
Dramaturgia: A sucessão dos acontecimentos que se passam na sala de apresentação segue a forma épica: independência e autonomia entre os quadros, ênfase na figura do narrador, parábolas divididas e situadas em duas esferas de tempo: o ano de 2015 e o ano de 2020. Tal divisão permite potencializar o gênero oposto, o dramático, pois embora a proposta seja claramente delineada no gênero épico, há fortes elementos que invadem os quadros, intensificando e corporificando uma espécie de “drama” universal que assola a humanidade e que se encontra diretamente ligado a nossa relação de dependência existencial com o mundo virtual. A cadeia estabelecida entre o intervalo de cinco anos que separa cada conjunto de quadros nos permite estabelecer o fio condutor para um desenlace trágico ao final da montagem. Desenlace trágico, mas curiosamente sem clímax – fruto é claro da estrutura eminentemente épica da montagem. As narrativas desenvolvidas em alguns quadros – fundamentalmente os narrados por Nando Lima – me dão a impressão de um texto forjado no processo criativo, no calor da experimentação da sala de trabalho; narrativa que nasce dividindo espaço com as vicissitudes dos atuantes, diretamente ligadas à relação que cada um estabelece com o mundo virtual e tecnológico que nos cerca. Este traço característico de depoimento pessoal deixa borrado, desse modo, os limites entre ficção e realidade, entre fábula e autobiografia. A exceção é o vídeo inicial apresentado por personagens do universo virtual Second Life; aqui temos claramente a distinção entre o real e o virtual; curioso, pois parece que a intenção com este vídeo logo no início da apresentação era exatamente o contrário.   
Atuações: O caráter autobiográfico da dramaturgia libera os atuantes para desempenharem suas ações não pautadas pela composição de uma personagem. Isto vale também para Pauli Banhos, embora ela se encontre em situação diferenciada em relação aos dois protagonistas (?) da performance: seu espaço de atuação situa-se a margem dos acontecimentos; trata-se de uma marginalidade de espaço – ela atua fundamentalmente na antessala do Estúdio Reator – , mas também uma marginalidade de tempo, pois hora somos levados a acreditar que se trata de uma personagem que se encontra num tempo passado – a trilha sonora na antessala é o principal indício –, mas sua ação de descerrar a porta, adentrar e posicionar-se ao funda da sala de apresentação dá contornos extemporâneos ao seu papel. Atuando na antessala Pauli transita entre as ações triviais e necessárias de recepção do espectador e as ações do seu papel. Novamente temos borrado as fronteiras entre ficção e realidade, pois a desenvoltura natural e segura da atuante não nos permite definir categoricamente se a ação de tirar o selfie com os espectadores é parte da fabulação ou simplesmente registro da atuante para efeitos de publicidade da montagem nas redes sociais. De qualquer forma, Pauli domina bem este espaço, mesmo quando percebemos claramente que se trata da bilheteira da montagem. O mesmo não se percebe no desempenho de Dudu Lobato. O atuante parece não estar à vontade neste lugar híbrido de depoimento pessoal e atuação cênica. Assim, nos quadros que ele conduz à narrativa é perceptível um ritmo mais lento e com pouquíssima entonação de voz; a narrativa segue boa parte do texto em ritmo linear e com variações mínimas de interpretação; embora a visualidade e a sonoridade instiguem e componha o quadro, a falta de domínio técnico no trato com o texto compromete o andamento da montagem que nestes momentos se torna monótona e enfadonha. Em contrapartida, a atuação de Nando Lima é sui generis: sua desenvoltura em cena nos oferece um misto de ator e narrador, dando-nos o equilíbrio necessário para seu desempenho enquanto performer. Nando domina com maestria o espaço cênico, seja controlando os equipamentos eletrônicos, seja interpretando dramaticamente a narração dos textos de seu quadro, ocasião que imprime um colorido que nos captura a cada palavra, a cada pausa ou semipausa; Nando degusta as palavras, desvenda o texto mostrando-se intensamente em cada frase proferida, dando-nos a dimensão autobiográfica de seu depoimento com naturalidade. Consegue, desse modo, revelar-se sem necessariamente utilizar a composição de uma personagem, imprime drama em sua narrativa sem escorregar para a mera leitura dramática ou dramatizada. É a boa combinação dos elementos técnicos que permite a ele sobressair-se como performer.
Observação Final: o último quadro da montagem me instigou bastante, pois nele se problematiza sobre o lugar do real: Seguramos o espelho ou somos a imagem refletida? Na parábola de Beckett, Vladmir e Estragon diante da desesperança pela não vinda de Godot, resolvem que a saída é a forca, embora nenhum dos dois consiga realizar o feito ou realizar coisa alguma. “NÃO HÁ NADA A SER FEITO”, é a constatação da imobilidade em que se encontra o homem. Diante do espelho, o que nos resta a fazer: desejar a mesma forca de Vladmir e Estragon (imobilidade), estilhaçar o espelho ou encontrar nele o refugio dissimulado para todos os problemas? Até quando insistiremos na sombra de Godot? Ele não veio e não virá. Não estamos salvos, não haverá salvador e é necessário tomarmos uma atitude urgente.
Edson Fernando

25.08.2015 

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