Autora: Silvia Luz. Atriz e Professora Mestre em Artes / PPGArtes/UFPA.
Na portaria aperto a
campainha nº 2 e uma voz pede para eu subir. Subo e deparo-me com uma Dama vestida de
preto. Agora, estou no segundo andar, um ambiente com pouca luz, sofás
vermelhos e um retroprojetor que lança na parede frases diversas. A jovem
desloca-se no espaço com uma taça de vinho e de repente puxa conversa com um
grupo de pessoas que está no mesmo sofá que eu.
Pediu-nos para escrever
uma frase no papel que estava em sua prancheta, escrevi a seguinte: “O fim é o início de tudo”, a outra pessoa
que estava ao meu lado escreveu algo sobre solidão e a jovem Dama começou a
falar conosco sobre esse assunto, pois toda vez que alguém apertava a
campainha, ela ansiosa corria, pois esperava duas pessoas e as mesmas nunca
chegavam.
Ela nos convidou para
adentramos outra sala, meus olhos curiosos percorreram o espaço e em seguida
sento-me. Diante de nós está um objeto oval vermelho, que depois de aberto transformou-se
em uma poltrona e tinha também uma tela de plástico aparentemente verde e por trás
dela havia uma bancada com dois atuantes manipulando seus respectivos
computadores, estavam com trajes neutros e máscaras, o curioso é que as máscaras
eram estilo do Boi de São Caetano de Odivelas.
O que vi foi uma
explosão de tudo, um “Absurdo”, uma revolução de linguagens. Foi surreal,
disparatado, insólito. Imagens eram lançadas na tela e no espaço todo, senti-me
às vezes num labirinto, era tudo muito confuso, imagens, vozes, sons... a
loucura do mundo atual. Essas características são marcas do Teatro do Absurdo,
o enredo, as personagens e o diálogo aos meus olhos eram sempre ilógicos,
desatinados, sempre caminhamos em círculos e esse caminhar nos revela o de
sempre, que estamos atolados na ausência de soluções para os seres humanos em nossa
sociedade.
Os atuantes descreveram
o espaço em níveis de 1 a 4, os espaços do Estúdio Reator. Os dois atuantes
eram chamados de Homem 01 e Homem 02; a lavagem cerebral acontecia em 11
níveis, logo tudo é cronologicamente marcado, mas ao mesmo tempo psicológico e não
linear.
Como a apresentação foi
marcada pelos números, enumerei as cenas, sendo que a (des)ordem pode não ser
exatamente como foi na apresentação, mas que atiçou um dos meus sentidos. A
Cena 1 fala do círculo; que todos nós vivíamos num e, que dentro dele éramos
felizes e seríamos protegidos. As cenas aconteciam em janeiro de 2015, julho e
agosto de 2020, mais uma vez a cronologia presente.
A imagem do círculo foi
projetada na tela verde, no ator, no espaço, na poltrona em todo lugar o
círculo era visível. Na cena 02, o Homem 02 sentava-se na poltrona e ficava ao
celular. Em outra cena – agora cena 03 – o Homem 01 lia um texto sobre sua
vida, ele morava só e criava vários bichos, cobras, rolas, escorpiões,
caramujo, peixes entre outros e alimentava todos apropriadamente quando ia
dormir. Os bichos dormiam com ele, todos. Eram seis cobras e todas aninhavam-se
em uma parte do seu corpo, a cobra 01 enrolava-se em sua perna direita e a
número 02 na perna esquerda, recordo-me que uma aninhava-se em seus escrotos,
sexo, pernas braços e os outros bichos abrigavam-se minuciosamente em cada
parte do seu corpo, nada ficava sem animal, somente o peixe do aquário que o
observava de longe, assim ele dormia em meio a companhia de todos eles e ao
amanhecer seu corpo estava todo machucado.
Ao narrar esse texto o
Homem 01 estava na bancada dizendo o texto, ao mesmo tempo que seu rosto
refletia na tela verde e sua voz ecoava, era uma mistura inebriante e medonha,
enquanto o Homem 02 diante da tela sentado na poltrona deliciava-se ao celular,
o espectador via a cena da poltrona com o atuante de costas, nesse momento o
Homem 02 assistia ou não o Homem 01 por meio da tela.
A cena 04 falava de uma
lavagem cerebral que existia em 11 níveis, chego à conclusão que os círculos
que nos aprisionam é a lavagem cerebral. Um dos círculos que aprisiona hoje é a
internet e seus recursos, ao mesmo tempo que nos conecta nos afasta humanamente
um do outro e isso é uma verdadeira lavagem cerebral, esta traz liberdade e
felicidade.
A cena mais instigante
é a Cena 05, a do espelho. O Homem ao se barbear ouve o espelho emitir um
barulho. Assustado não acredita, mas o barulho se repete e isso acontece em
vários dias, meses. Com o passar do tempo o espelho repete palavras ensinadas
pelo homem, começa um possível diálogo entre eles. Nesta cena o Homem 01 está
na bancada diante do computador atuando e sua imagem é refletida na tela,
enquanto o Homem 02 está na frente da tela desmontando o que seria o espelho,
que fora armado anteriormente pelo Homem 01, este composto de uma base de ferro
e um suporte do mesmo material, sendo que o espelho era a poltrona vermelha,
que em todo momento da apresentação refletia a imagem de um olho. O olho que
tudo vê e nada vê.
O diálogo entre o
espelho e o Homem 01 continuava e, em um determinado momento, o espelho começou
a gritar: - Socorro!!! Socorro!!! E o Homem ficou assustado e não acreditava no
que estava ouvindo. Não sabia o que fazer até que resolveu entrar no espelho e
lá permaneceu, preso em seu círculo. Não quebrou o espelho pois seria um crime,
preferiu aprisionar-se no espelho e encontrar a voz que saía do mesmo.
A apresentação é
despojada de convenções, é arbitrária e imaginativa, foge a estrutura lógica do
teatro tradicional. Remeto-me novamente ao Teatro do Absurdo quando é posto a
existência humana sem sentido num universo governado pelo acaso. O que vi
parecia reflexo de sonhos e pesadelos do Homem 01, mas uma aproximação com o
Teatro do Absurdo, pois um dos maiores dramaturgos do teatro do absurdo, Eugéne
Ionesco retratava assim os personagens que ele criava, não eram reconhecíveis; igualmente
como Homem 01 e o Homem 02, assemelhavam-se a bonecos e isso foi pontuado por
meios do uso das máscaras e roupa neutra, que curiosamente eram iguais ao
vestido da Dama de preto; o diálogo é confuso e às vezes incoerente,
remetendo-nos ao isolamento muitas vezes.
O que contribui também
para isso foi o não entendimento do texto dito pelo ator Dudu Lobato que fazia
o Homem 02, quase não entendia o que ele dizia, pouco volume de voz, devido a
riqueza de sons e imagens a voz se perdera por alguns momentos e isso facilitou
minha fuga para outro círculo, no caso o visual.
Percebo a linguagem da
“peça” como híbrida, acredito que é a única linguagem que dá conta do que vi. Seria
Performance Arte ou Performance Híbrida? Segundo Renato
Cohen em seu livro Performance como
Linguagem (2004):
[...] é
impossível falar-se de uma linguagem pura para a performance. Ela é híbrida,
funcionando como uma espécie de fusão e ao mesmo tempo como uma releitura,
talvez a partir de sua própria ideia da arte total, das mais diversas – e às
vezes antagônicas – propostas modernas de atuação. (COHEN, 2004, p. 108).
Trago os conceitos
acima pois o próprio diretor e atuante da peça Nando Lima intitula seu trabalho
como Peformance, então para promover
o debate, que mutações são essas que a Arte sofre atualmente? Sabemos que é
impossível uma definição única do que vem a ser se guiarmos pelas Artes
Visuais, Teatro, Dança, Música, Cinema, ela pode ser multicultural, multimídia,
mas tenho certeza que ela é criativa por excelência.
Essa mistura toda em
determinado momento me entediou, mas pensei: “Não posso fechar-me no meu círculo,
preciso quebrá-lo e chegar ao fim. Mas que fim?” Essa demora fez-me solitária e
insignificante em minha existência, diante de tanta informação, cores, sons,
imagens.
Assim muitas vezes nos sentimos nesse mundo tecnológico e veloz. Essa
velocidade nos aprisiona, cada um em seu círculo; estamos sozinhos com nosso
celular e outros aparelhos eletrônicos, isso é constatado no início da
apresentação, onde cada espectador faz um self
com a atuante Pauli Banhos que aos meus olhos foi a Clepsidra, de Camilo
Peçanha ou relógio de água do espetáculo - esse foi um dos primeiros sistemas
criados pelo homem para medir o tempo.
A atuante realmente estava naquele lugar, gostaria que ela encontrasse as duas
pessoas que esperava há tempos.
A marca da
apresentação, o tempo, àquele que já foi e o que já é, este tempo que em
questão de segundos se esvai – o self já
estava nas redes sociais –; essa rapidez nos aprisiona dentro do espelho, que
pode ser qualquer coisa, nesse caso é a rede da internet, isso é uma lavagem
cerebral, mas aceitamos, pois lá podemos ser livres e felizes.... Tu entrarias
ou quebrarias o espelho?
Por
Silvia Luz
30.08.2015