Espetáculo:
Maresia. Grupo Projeto Vertigem.
Crítica produzida por
Edson Fernando, Ator e Diretor Teatral.
Enquanto observava o
bamboleio das três atuantes numa desenvoltura lúdica com os colares de conchas
do mar durante a apresentação do espetáculo Maresia, do Projeto Vertigem, as questões inquietantes que alimentam
esta reflexão me atravessaram: até quando a ênfase dos processos criativos em
artes cênicas recairá na experimentação? Até que ponto esta ênfase não esgota –
ou esgotou – a essência das artes do espetáculo? Em que medida a experimentação
fragiliza os condicionamentos técnicos necessários para a manutenção da
qualidade da cena? Quais os desdobramentos econômicos, sociológicos,
filosóficos, políticos e ideológicos do uso indiscriminado da experimentação?
Quando o uso da experimentação se volta contra os criadores e os tornam agentes
anacrônicos da história e da cena local?
Embora estas questões
tenham me atravessado durante a apresentação do espetáculo supracitado, elas
não se dirigem especifica e exclusivamente a este grupo e sua montagem, mas
estabelecem relação direta com boa parte da produção local em artes cênicas.
Por este motivo, penso ser importante repercuti-las com os criadores locais
para tentarmos juntos compreender o labirinto poético-conceitual em que nos encontramos.
Sempre que necessário, no entanto, tomarei como exemplo, para ilustrar ou
aprofundar alguma questão, as cenas de Maresia.
É importante ressaltar ainda que, novamente, corro o risco de desenvolver as
questões de modo hermeticamente voltado para os criadores, negligenciando,
portanto, o papel de mediação com o público que cabe ao crítico. Assumo o risco
compreendendo que a função em relevo colocada aqui é a de pensar criticamente a
cena e não propriamente o da assinatura de uma crítica teatral.
O primeiro desafio que
se impõe é o de saber lidar com os termos e seus desdobramentos conceituais.
Então, quando falamos em experimentação no teatro invariavelmente remetemos a
diversas práticas contemporâneas: teatro de vanguarda, performance, teatro-laboratório,
teatro de pesquisa, dança-teatro e – a mais em voga recentemente – teatro
pós-dramático. Todas, no entanto, apontam para um lugar inicialmente comum:
oposição e superação da relação tradicionalmente estabelecida pelo que se
convencionou chamar de teatro burguês.
Opor-se e superar tal
tradição exige de um processo criativo experimental a revisão de vários
elementos estruturantes da linguagem teatral, tais como: destituição do texto
como eixo principal; novas e diversas formas de conceber a relação
palco-plateia; o público passa a ser parceiro da cena – dependendo da obra, de
modo mais contundente e explicito – e não espectador passivo e submisso;
atuante como mais um signo dentro do conjunto de elementos da obra –
cenografia, sonoplastia, iluminação, figurino; pluralidade de sentidos em
oposição ao sentido fechado e unívoco; vulnerabilidade das fronteiras entre as
linguagens das artes plásticas, cênicas e performativas; entretenimento, ação
política e fruição estética agrupadas – ou diluídas? – num mesmo ato.
Nada disso, no entanto,
é novidade por aqui. Basta tomarmos como exemplo o trabalho do grupo Cena
Aberta criado na década de 1970 por ex-alunos da Escola de Teatro e Dança da
UFPA e retratado de modo primoroso pela pesquisa histórica de Denis Bezerra. O
trabalho inaugural do grupo, Quarto de
Empregada, de Roberto Freira – dirigido por Luiz Otávio Barata com atuações
de Margaret Refkalefsky e Zélia Amador de Deus – já atesta segundo Bezerra
(2013, p.95) o uso de inovações que vão ao encontro de alguns dos elementos
citados anteriormente.
Interessante observar
como o trabalho deste grupo dialoga com as práticas catalogadas por Hans-Thies
Lehman no período que compreende os anos de 1970 a 1990 e definidas como
pós-dramáticas. Não somente dialoga como se insere no mesmo período histórico
datado por Lehman. Não podemos negligenciar, então, os aspectos eminentemente
políticos destacados pelo pensador alemão ao compreender as práticas
pós-dramáticas como práticas pós-brechtianas, pois são tentativas diversas de
se contrapor ao projeto de subjetivação do sistema capitalista voltado a
passivar a percepção estética do público (2007, p.10).
A produção do Cena
Aberta, neste sentido, encontra-se em consonância com as premissas
pós-dramáticas como podemos atestar visitando os registros de alguns trabalhos
emblemáticos do grupo, novamente pela lente de Bezerra (2013, p.100-2): Theastai, Theatron de 1983, dá início a
exploração de uma poética fundada na corporeidade e, em particular, ao corpo nu
como elogio a liberdade e protesto contra a repressão da Censura do regime militar;
Genet: o Palhaço de Deus de 1988, Posição Pela Carne de 1989 e Em Nome do Amor de 1990 – todos
dirigidos por Luiz Otávio Barata – compõem a trilogia do grupo que ratifica sua
poética alicerçada na corporeidade e valorização da sexualidade além da
vinculação à uma linguagem voltada para as origens ritualísticas e religiosas
do teatro.
Observo, portanto, que
a experimentação no contexto do Cena Aberta desenvolveu-se numa relação
dialética entre a necessidade de forjar sua própria poética – forma – e o
imperativo político que se impunha para discutir a conjuntura do país e da
cidade – conteúdo. Experimentar naquele contexto configurava-se – dentre outras
coisas – como ato de legitimação de uma arte de resistência política objetivando
um modo de percepção que reconhecesse o público como elemento ativo e
transformador do quadro social.
Vinte quatro anos nos
separam de Em Nome do Amor, último
espetáculo criado pelo Cena Aberta e me vejo em meio as questões que abrem essa
reflexão, tentando compreender o labirinto conceitual em que estamos enredamos,
sem saber se somos vítimas ou algozes da experimentação. É obvio que temos de
considerar que a conjuntura é outra, o regime político é outro e que a formação
dos grupos teatrais atende por outras motivações. Não se trata, portanto, de
estabelecer uma analogia entre os períodos históricos e as formas de atuação
poética-política, mas de procurar compreender como o conceito de experimentação
tem potencializado o esvaziamento de uma visão holística que articule forma e
conteúdo, poética e ética, arte e política.
Voltemos, então, a cena
que me disparou as inquietantes reflexões: o bamboleio que as três atuantes
executam com os colares de conchas do mar. Há nesta ação do bambolear uma
dimensão eminentemente lúdica: a descoberta do objeto – sua sonoridade, textura
e balanço – sendo explorada no corpo das atuantes e provocando uma brincadeira
de bailado entre elas. É notório que a movimentação, a marcação e quiçá a
concepção da cena tenham sido estabelecidos a partir da experimentação com este
elemento cenográfico – o colar de conchas do mar. Mas o que se estabelece para
elem desta ludicidade? Podemos e construímos sentido para esta ação – afinal
sabemos desde Ernest Cassirer (1874 – 1945) que o homem é um animal simbólico –
mas o que se impõe em cena é o jogo experimental das atuantes com o objeto. Há
desse modo, ênfase na experimentação enquanto forma, ao passo que o conteúdo
se vê fragilizado e dependente de uma inferência lírica e pessoal do
público.
Processo semelhante ao
descrito nesta cena de Maresia
ocorre com recorrência na produção local modificando-se, via de regra, somente
o elemento indutor para o processo de experimentação. Quando isso se dá, fico
sempre com a impressão de que cenas como a do “bambolear dos colares de conchas
do mar” não foram feitas para serem assistidas e sim para serem fruídas na
prática por cada espectador. O curioso é que esse convite por vezes não ocorre,
como não ocorreu em Maresia. Ficamos
provocados pela ludicidade da ação, mas não somos autorizados a praticá-la no
palco e por isso recorremos à construção de um sentido simbólico para a cena. E
quando o convite ocorre, inevitavelmente, o que se explora com o público é tão
somente a mesma dimensão lúdica da experimentação a partir do objeto. Ou seja,
a ênfase da experimentação enquanto forma
aprisiona os gestos na dimensão lúdica apartando-os de sua dimensão econômica,
política, sociológica, filosófica e ideológica.
Então, poderíamos nos
questionar: Em que medida os processos de experimentação que assentam sua
ênfase na forma tem contribuído para
um posicionamento estratégico e político em nossa conjuntura? Por que
continuamos experimentamos? Quem têm se servido desta espécie de
experimentação?
Uma constatação
lamentável pode ser extraída dos últimos atos organizados coletivamente pela
classe artística em nossa cidade, ocorrida por volta de Junho de 2013: nossa
capacidade de compreender a experimentação como ato altamente subversivo e
implosivo se viu, e se vê, absolutamente desprovida de consistência e caráter
histórico. Àquela altura o máximo que conseguimos foi gritar um “Chega!!!” as
portas do Teatro da Paz, sem sequer incomodar uma única alma que fruía
tranqüila e confortavelmente a abertura do XII Festival de Opera promovido pelo
Governo do Estado do Pará. O exercício da experimentação se deu de que modo naquela
ocasião? Reproduzimos uma forma de nos portarmos diante do Establishment seguindo os próprios princípios do Establishment: o
grito comedido de “Chega!!!” estava pautado pela preocupação da repercussão do
ato junto a opinião pública. Então, era perigoso ousar propondo qualquer tipo
de experimentação mais radical. A experimentação como ato subversivo, no
entanto, se pauta tão somente com vistas a implodir o que já está estabelecido,
como mencionamos anteriormente. Nossa ação no que se convencionou chamar de
“Movimento Chega”, não ultrapassou, portanto, a dimensão lúdica proposta pelas
apresentações artísticas que foram colocadas na frente do Teatro da Paz.
É apenas um exemplo do
quanto temos que aprender com os métodos que aparentemente são tão corriqueiros
e recorrentes nos nossos processos de criação.
Outra questão
pertinente é voltada a refletir sobre quem tem fomentado a experimentação como
procedimento metodológico legítimo para processos de criação. Em nossa cidade,
sem dúvida, merece destaque as Bolsas de Criação,
Experimentação, Pesquisa e Divulgação Artística promovidas pelo IAP – Instituto
de Artes do Pará. São treze anos promovendo este tipo de fomento voltado às
linguagens da fotografia, instalação, audiovisual, música, teatro, dança,
poesia, curadoria e design. O próprio Maresia, do Projeto Vertigem, é resultado de uma dessas bolsas
contemplada no ano de 2013. A questão, obviamente, não é afirmar o
comprometimento de qualquer projeto vinculado às bolsas do IAP ou de qualquer
outra agência financiadora – exemplo disso é a própria obra literária de Denis
Bezerra citada anteriormente aqui ou mesmo o resultado do Projeto Vertigem –;
muito menos colocar em xeque de modo irresponsável este tipo de fomento tão
raro e escasso em nossa cidade quanto à seriedade na aplicação das leis de
trânsito. Mas provocar o exercício crítico nos pesquisadores-artistas fazendo-os
perceber que é preciso problematizar este lugar e tipo de experimentação. Do
contrário, o exercício de ludicidade continuará a ser cada vez mais aprofundado
por meio das experimentações mais variadas, em detrimento de uma experimentação
que nos favoreça reconhecer nossa capacidade de protagonizar as mudanças
desejáveis no momento presente.
O desafio que atravessa
todas as questões levantadas aqui parece ser impor ainda: Por que
Experimentamos? Como Experimentamos? Pra que Experimentamos? O propósito não é encontrar
respostas absolutas para estas questões, mas voltar o olhar para a própria prática
artística compreendendo que na primeira questão – Por que Experimentamos? –
encontra-se a dimensão filosófica de nosso trabalho, na segunda questão – Como Experimentamos?
– os procedimentos e arcabouço propriamente poéticos do nosso fazer e, por fim,
a terceira questão – Pra que Experimentamos? – nos coloca diante de nossa
responsabilidade ética em face da conjuntura sócio-político-econômico de nossa
sociedade.
Meu desejo é que o
exercício crítico voltado a estas questões nos permita discernimento para
compreender o presente e não perder os trilhos da história e, quem sabe ainda,
perceber e atuar com os elementos que nos levem a descoberta de uma era
pós-experimentação.
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