sábado, 13 de dezembro de 2014

Sobre a Maresia dos Tempos de Experimentação

Espetáculo: Maresia. Grupo Projeto Vertigem.
Crítica produzida por Edson Fernando, Ator e Diretor Teatral.

Enquanto observava o bamboleio das três atuantes numa desenvoltura lúdica com os colares de conchas do mar durante a apresentação do espetáculo Maresia, do Projeto Vertigem, as questões inquietantes que alimentam esta reflexão me atravessaram: até quando a ênfase dos processos criativos em artes cênicas recairá na experimentação? Até que ponto esta ênfase não esgota – ou esgotou – a essência das artes do espetáculo? Em que medida a experimentação fragiliza os condicionamentos técnicos necessários para a manutenção da qualidade da cena? Quais os desdobramentos econômicos, sociológicos, filosóficos, políticos e ideológicos do uso indiscriminado da experimentação? Quando o uso da experimentação se volta contra os criadores e os tornam agentes anacrônicos da história e da cena local?
Embora estas questões tenham me atravessado durante a apresentação do espetáculo supracitado, elas não se dirigem especifica e exclusivamente a este grupo e sua montagem, mas estabelecem relação direta com boa parte da produção local em artes cênicas. Por este motivo, penso ser importante repercuti-las com os criadores locais para tentarmos juntos compreender o labirinto poético-conceitual em que nos encontramos. Sempre que necessário, no entanto, tomarei como exemplo, para ilustrar ou aprofundar alguma questão, as cenas de Maresia. É importante ressaltar ainda que, novamente, corro o risco de desenvolver as questões de modo hermeticamente voltado para os criadores, negligenciando, portanto, o papel de mediação com o público que cabe ao crítico. Assumo o risco compreendendo que a função em relevo colocada aqui é a de pensar criticamente a cena e não propriamente o da assinatura de uma crítica teatral.
O primeiro desafio que se impõe é o de saber lidar com os termos e seus desdobramentos conceituais. Então, quando falamos em experimentação no teatro invariavelmente remetemos a diversas práticas contemporâneas: teatro de vanguarda, performance,  teatro-laboratório, teatro de pesquisa, dança-teatro e – a mais em voga recentemente – teatro pós-dramático. Todas, no entanto, apontam para um lugar inicialmente comum: oposição e superação da relação tradicionalmente estabelecida pelo que se convencionou chamar de teatro burguês.
Opor-se e superar tal tradição exige de um processo criativo experimental a revisão de vários elementos estruturantes da linguagem teatral, tais como: destituição do texto como eixo principal; novas e diversas formas de conceber a relação palco-plateia; o público passa a ser parceiro da cena – dependendo da obra, de modo mais contundente e explicito – e não espectador passivo e submisso; atuante como mais um signo dentro do conjunto de elementos da obra – cenografia, sonoplastia, iluminação, figurino; pluralidade de sentidos em oposição ao sentido fechado e unívoco; vulnerabilidade das fronteiras entre as linguagens das artes plásticas, cênicas e performativas; entretenimento, ação política e fruição estética agrupadas – ou diluídas? – num mesmo ato.
Nada disso, no entanto, é novidade por aqui. Basta tomarmos como exemplo o trabalho do grupo Cena Aberta criado na década de 1970 por ex-alunos da Escola de Teatro e Dança da UFPA e retratado de modo primoroso pela pesquisa histórica de Denis Bezerra. O trabalho inaugural do grupo, Quarto de Empregada, de Roberto Freira – dirigido por Luiz Otávio Barata com atuações de Margaret Refkalefsky e Zélia Amador de Deus – já atesta segundo Bezerra (2013, p.95) o uso de inovações que vão ao encontro de alguns dos elementos citados anteriormente.
Interessante observar como o trabalho deste grupo dialoga com as práticas catalogadas por Hans-Thies Lehman no período que compreende os anos de 1970 a 1990 e definidas como pós-dramáticas. Não somente dialoga como se insere no mesmo período histórico datado por Lehman. Não podemos negligenciar, então, os aspectos eminentemente políticos destacados pelo pensador alemão ao compreender as práticas pós-dramáticas como práticas pós-brechtianas, pois são tentativas diversas de se contrapor ao projeto de subjetivação do sistema capitalista voltado a passivar a percepção estética do público (2007, p.10).
A produção do Cena Aberta, neste sentido, encontra-se em consonância com as premissas pós-dramáticas como podemos atestar visitando os registros de alguns trabalhos emblemáticos do grupo, novamente pela lente de Bezerra (2013, p.100-2): Theastai, Theatron de 1983, dá início a exploração de uma poética fundada na corporeidade e, em particular, ao corpo nu como elogio a liberdade e protesto contra a repressão da Censura do regime militar; Genet: o Palhaço de Deus de 1988, Posição Pela Carne de 1989 e Em Nome do Amor de 1990 – todos dirigidos por Luiz Otávio Barata – compõem a trilogia do grupo que ratifica sua poética alicerçada na corporeidade e valorização da sexualidade além da vinculação à uma linguagem voltada para as origens ritualísticas e religiosas do teatro.
Observo, portanto, que a experimentação no contexto do Cena Aberta desenvolveu-se numa relação dialética entre a necessidade de forjar sua própria poética – forma – e o imperativo político que se impunha para discutir a conjuntura do país e da cidade – conteúdo. Experimentar naquele contexto configurava-se – dentre outras coisas – como ato de legitimação de uma arte de resistência política objetivando um modo de percepção que reconhecesse o público como elemento ativo e transformador do quadro social.
Vinte quatro anos nos separam de Em Nome do Amor, último espetáculo criado pelo Cena Aberta e me vejo em meio as questões que abrem essa reflexão, tentando compreender o labirinto conceitual em que estamos enredamos, sem saber se somos vítimas ou algozes da experimentação. É obvio que temos de considerar que a conjuntura é outra, o regime político é outro e que a formação dos grupos teatrais atende por outras motivações. Não se trata, portanto, de estabelecer uma analogia entre os períodos históricos e as formas de atuação poética-política, mas de procurar compreender como o conceito de experimentação tem potencializado o esvaziamento de uma visão holística que articule forma e conteúdo, poética e ética, arte e política. 
Voltemos, então, a cena que me disparou as inquietantes reflexões: o bamboleio que as três atuantes executam com os colares de conchas do mar. Há nesta ação do bambolear uma dimensão eminentemente lúdica: a descoberta do objeto – sua sonoridade, textura e balanço – sendo explorada no corpo das atuantes e provocando uma brincadeira de bailado entre elas. É notório que a movimentação, a marcação e quiçá a concepção da cena tenham sido estabelecidos a partir da experimentação com este elemento cenográfico – o colar de conchas do mar. Mas o que se estabelece para elem desta ludicidade? Podemos e construímos sentido para esta ação – afinal sabemos desde Ernest Cassirer (1874 – 1945) que o homem é um animal simbólico – mas o que se impõe em cena é o jogo experimental das atuantes com o objeto. Há desse modo, ênfase na experimentação enquanto forma, ao passo que o conteúdo se vê fragilizado e dependente de uma inferência lírica e pessoal do público.
Processo semelhante ao descrito nesta cena de Maresia ocorre com recorrência na produção local modificando-se, via de regra, somente o elemento indutor para o processo de experimentação. Quando isso se dá, fico sempre com a impressão de que cenas como a do “bambolear dos colares de conchas do mar” não foram feitas para serem assistidas e sim para serem fruídas na prática por cada espectador. O curioso é que esse convite por vezes não ocorre, como não ocorreu em Maresia. Ficamos provocados pela ludicidade da ação, mas não somos autorizados a praticá-la no palco e por isso recorremos à construção de um sentido simbólico para a cena. E quando o convite ocorre, inevitavelmente, o que se explora com o público é tão somente a mesma dimensão lúdica da experimentação a partir do objeto. Ou seja, a ênfase da experimentação enquanto forma aprisiona os gestos na dimensão lúdica apartando-os de sua dimensão econômica, política, sociológica, filosófica e ideológica.
Então, poderíamos nos questionar: Em que medida os processos de experimentação que assentam sua ênfase na forma tem contribuído para um posicionamento estratégico e político em nossa conjuntura? Por que continuamos experimentamos? Quem têm se servido desta espécie de experimentação?
Uma constatação lamentável pode ser extraída dos últimos atos organizados coletivamente pela classe artística em nossa cidade, ocorrida por volta de Junho de 2013: nossa capacidade de compreender a experimentação como ato altamente subversivo e implosivo se viu, e se vê, absolutamente desprovida de consistência e caráter histórico. Àquela altura o máximo que conseguimos foi gritar um “Chega!!!” as portas do Teatro da Paz, sem sequer incomodar uma única alma que fruía tranqüila e confortavelmente a abertura do XII Festival de Opera promovido pelo Governo do Estado do Pará. O exercício da experimentação se deu de que modo naquela ocasião? Reproduzimos uma forma de nos portarmos diante do Establishment seguindo os próprios princípios do Establishment: o grito comedido de “Chega!!!” estava pautado pela preocupação da repercussão do ato junto a opinião pública. Então, era perigoso ousar propondo qualquer tipo de experimentação mais radical. A experimentação como ato subversivo, no entanto, se pauta tão somente com vistas a implodir o que já está estabelecido, como mencionamos anteriormente. Nossa ação no que se convencionou chamar de “Movimento Chega”, não ultrapassou, portanto, a dimensão lúdica proposta pelas apresentações artísticas que foram colocadas na frente do Teatro da Paz.                         
É apenas um exemplo do quanto temos que aprender com os métodos que aparentemente são tão corriqueiros e recorrentes nos nossos processos de criação.
Outra questão pertinente é voltada a refletir sobre quem tem fomentado a experimentação como procedimento metodológico legítimo para processos de criação. Em nossa cidade, sem dúvida, merece destaque as Bolsas de Criação, Experimentação, Pesquisa e Divulgação Artística promovidas pelo IAP – Instituto de Artes do Pará. São treze anos promovendo este tipo de fomento voltado às linguagens da fotografia, instalação, audiovisual, música, teatro, dança, poesia, curadoria e design. O próprio Maresia, do Projeto Vertigem, é resultado de uma dessas bolsas contemplada no ano de 2013. A questão, obviamente, não é afirmar o comprometimento de qualquer projeto vinculado às bolsas do IAP ou de qualquer outra agência financiadora – exemplo disso é a própria obra literária de Denis Bezerra citada anteriormente aqui ou mesmo o resultado do Projeto Vertigem –; muito menos colocar em xeque de modo irresponsável este tipo de fomento tão raro e escasso em nossa cidade quanto à seriedade na aplicação das leis de trânsito. Mas provocar o exercício crítico nos pesquisadores-artistas fazendo-os perceber que é preciso problematizar este lugar e tipo de experimentação. Do contrário, o exercício de ludicidade continuará a ser cada vez mais aprofundado por meio das experimentações mais variadas, em detrimento de uma experimentação que nos favoreça reconhecer nossa capacidade de protagonizar as mudanças desejáveis no momento presente.   
O desafio que atravessa todas as questões levantadas aqui parece ser impor ainda: Por que Experimentamos? Como Experimentamos? Pra que Experimentamos? O propósito não é encontrar respostas absolutas para estas questões, mas voltar o olhar para a própria prática artística compreendendo que na primeira questão – Por que Experimentamos? – encontra-se a dimensão filosófica de nosso trabalho, na segunda questão – Como Experimentamos? – os procedimentos e arcabouço propriamente poéticos do nosso fazer e, por fim, a terceira questão – Pra que Experimentamos? – nos coloca diante de nossa responsabilidade ética em face da conjuntura sócio-político-econômico de nossa sociedade.

Meu desejo é que o exercício crítico voltado a estas questões nos permita discernimento para compreender o presente e não perder os trilhos da história e, quem sabe ainda, perceber e atuar com os elementos que nos levem a descoberta de uma era pós-experimentação.

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