sábado, 20 de dezembro de 2014

Oração ao tempo: memórias de lembranças que não passam.

Espetáculo: Oração ao tempo.
Credenciais do autor da crítica: Dênis Bezerra é Ator, Diretor e Prof. Dr. da UFPA.

És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo, tempo, tempo, tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo, tempo, tempo, tempo.

Caetano Veloso

O espetáculo Oração ao Tempo, do segundo ano do curso Técnico de Ator da Escola de Teatro e Dança da UFPa, dirigido por Marton Maués e Jorge Torre, provocou-me a tecer algumas linhas sobre o trabalho. Tive a oportunidade de assistir duas vezes, na estreia e na sexta-feira, em ambos os momentos fui levado às minhas memórias, e à intensa relação que tenho com os velhos.
Dividido em quinze quadros, o espetáculo organiza-se como uma grande instalação na qual os espectadores podem interagir e trocar experiências com os personagens. Cada história perpassa pela temática da velhice, de um momento na vida do homem cujos sentimentos se misturam: a morte, a lembrança da juventude, a espera pela família, por um carinho, um afeto, uma mão para tocar peles marcadas pela história, sedentas de calor humano.
São diversos universos apresentados a nós espectadores, que precisamos nos deslocar pelos vários espaços e estabelecer conexões com as histórias de vida narradas. Cada detalhe é especial, o figurino, a cenografia, mas principalmente a interpretação dos atores em comunhão com o passado e presente juntos.
As palavras que aqui teço não são tomadas pelo olhar apurado de um exercício crítico, mas tocadas pelas sensações que senti ao presenciar esse digno trabalho, porque ele é para fruir, e foi isso que ocorreu comigo, a fruição, deletei-me com o espetáculo, cheguei ao estado de prazer relatado por Roland Barthes, em O prazer do texto:
O que eu aprecio, num relato, não é pois diretamente o seu conteúdo, nem mesmo sua estrutura, mas antes as esfoladuras que imponho ao belo envoltório: corro, salto, ergo a cabeça, torno a mergulhar. Nada a ver com a profunda rasgadura que o texto da fruição imprime a própria linguagem, e não a simples temporalidade de sua leitura.

Esse estado de fruição foi alcançado em vários momentos. No primeiro dia, pelo impacto de tudo; no segundo, pela sensação de apreciar o que no dia anterior não tinha sido possível, devido à emoção que me arrebatou, e por ter presenciado novamente essas histórias. Resolvi interagir mais, mergulhar com mais profundidade pelo café servido, pela rede que me lembra minha avó, pelos brinquedos, discos, vitrolas, mosquiteiro, álbuns, fotos que representam várias trajetórias de pessoas que não conheci, mas que se apresentaram pelo corpo dos atores ali em comunhão comigo.
Com relação à interpretação, quase todos me convenceram, cada detalhe, a transformação de um corpo jovem, pulsante, que aos poucos vão ganhando as marcas do tempo. As mãos trêmulas, o andar marcado pelo peso do tempo, as vozes num compasso da experiência.
Os elementos cenográficos me permitiram viajar para as minhas histórias, aos momentos os quais convivi com velhos, tanto em minha família, quanto em outras oportunidades do dia-a-dia, quando encontramos senhoras perfumadas, arrumadas em suas janelas à espera de alguém ou de um afeto, a contemplar a passagem do tempo ou à chegada do fim, pois como diz Ecléa Bosi, em Memória e sociedade: lembranças de velhos,
A lembrança é a sobrevivência do passado. O passado, conservando-se no espírito de cada ser humano, aflora à consciência na forma de imagens-lembranças. A sua forma pura seria a imagem presente nos sonhos e nos devaneios.
Quero destacar duas cenas. A primeira é a de um senhor em diálogo com as lembranças de sua esposa, representada pela pintura na parede. Ele desenha para não esquecer. Assim, sobre os papeis surgem cores e formas, imagens e recordações de sua vida, da mulher amada, materializada pelo deslizar dos lápis coloridos.
A outra cena, é da velha senhora, envolta por seu mosquiteiro-casa, à espera de seu amado filho que nunca vem, e que mergulha na esperança desse encontro, sustentada pelo cordão da realidade, que a faz emergir do mar da saudade para o aguardar cotidiano. Esse “quadro” me fez lembrar das várias imagens de mulheres que na história da humanidade esperam por seus filhos, maridos, amigos. O fiar silencioso enquanto Eles não retornam a sua Ítaca.
Só tenho a agradecer à equipe de Oração ao tempo, por ter proporcionado esse momento de lembranças, com cheiros de memórias em cada álbum, em cada imagem, em cada história apresentada.

O tempo tem tempo de tempo ser,
o tempo tem tempo de tempo dar,
ao tempo da noite que vai correr,
ao tempo do dia que vai chegar...


Denis Bezerra.
20.12.2014


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