Crítica ao espetáculo UM, por Edson
Fernando
Quando
se está “entre” nos é permitido gozar da suspensão das categorias absolutas,
pois no estado intermediário as coisas ou seres adquiriam uma potência
ambivalente que retroalimentam sua condição mais elementar. Na adolescência,
por exemplo, deixamos a infância pra trás sem, no entanto, termos alcançado a
idade adulta e este estado intermediário proporciona a situação paradoxal de um
ser – o adolescente – que deixou de ser – criança – mas ainda não se tornou o
ser – adulto. Ele, portanto, encontra-se em estado de suspensão, pois deixou de
ser, sem ainda ter se tornado. A adolescência, neste sentido, pode ser
considerada uma categoria relativa a um ser em estado de transição.
Se
voltarmos esta pequena reflexão para problematizar nossa condição humana em
suas múltiplas dimensões – ética, política, econômica, filosófica, sociológica,
etc. – poderemos constatar que estar no lugar “entre” de alguma forma nos
permite o ultrapassamento de nossa dimensão mais subjetiva, proporcionando-nos a
revisão, abstração ou mesmo a subversão de todos os nossos valores instituídos.
O mesmo se aplica as práticas artísticas que se colocam como
operacionalizadoras destes espaços “entre”, isto é, as práticas que instauram
no palco a dimensão e realização de um rito. É o que ocorre com a pesquisa mais
recente da Companhia Moderno de Dança no espetáculo UM. É a partir do lugar “entre” que me permitirei tecer algumas
considerações à pesquisa que se encontra em andamento.
O
primeiro elemento relevante a se considerar encontra-se exatamente no fato da
Companhia compartilhar, primeiramente, a pesquisa em andamento por meio de sessões
de fruição da obra aberta ao publico para, então, de modo colaborativo
posteriormente afinar o espetáculo. Este encaminhamento mostra a maturidade do
grupo envolvido na pesquisa e sua responsabilidade e preocupação em encontrar
novos meios de compartilhamento dos seus conhecimentos e de sua arte, meios que
se estabeleçam para além do entendimento da obra como produto. O processo
criativo é importante, tão importante ou até mais importante que a visão
mercadológica estabelecida que concebe o artista como mais um trabalhador no
meio social. Não causa surpresa, neste sentido, que a pesquisa tenha sido
contemplada com o PRÊMIO FUNARTE PETROBRÁS DE DANÇA KLAUSS VIANNA 2013; pelo
contrário, mostra o reconhecimento de um projeto maduro que pensa e estabelece
sua arte em consonância com as demandas atuais da sociedade.
Assim,
as considerações que apresento, a seguir, configuram-se como tentativas de
colaboração com o corpo de uma obra que, embora se encontre em andamento, já se
mostra plenamente vigorosa e com seu arcabouço processual muito bem
estabelecido, ou seja, o lugar do “entre”, ou para ser mais exato, utilizando a
nomenclatura de Victor Turner, a esfera da experiência liminóide – espécie de experiência contemporânea que proporciona
similaridade ao tempo e espaço instaurados pela liminaridade dos ritos antigos.
É por esta lente que discorro agora.
A
imponência da área de atuação estabelecida pela arena circular, iluminada por
candeeiros de velas e chão de terra – muita terra – imediatamente nos defronta
com nossa pequenez diante dos espaços sagrados ou sacralizados. A sacralidade
do espaço é completada pela sonoplastia executava ao vivo e, fundamentalmente,
pelos atuantes a ritualizar suas ações iniciais. O choque com esta imagem
inicial que a Companhia nos oferece é brutal e, talvez por isso, o processo de
reconhecimento dos elementos destoantes se imponha também tão imediatamente aos
nossos olhos: as cadeiras de plástico brancas, reservadas aos espectadores,
rompem a estética de ancestralidade visual formando um anel frio em volta da
área de atuação, anel visual apartado de todas as ações intensas que serão vivenciadas
pelos atuantes no solo arenoso. E se por um lado temos terra, fogo, água e ar
intensamente trabalhados no espaço sacralizado da vivencia do rito, por outro é
reservado aos espectadores o plástico das cadeiras e o chão em carpete formando
um pequeno fosso que separa o espectador do alcance do solo viripotente da
vivência. Desse modo, o contato direto com a terra, capital na relação dos
atuantes e sua dimensão gestual ancestral durante toda a vivência, revela-se de
modo antagônico com o público por sua relação asséptica com o espectador.
Esta
arena, portanto, constrói seu próprio espaço liminóide reservado exclusivamente aos seus iniciados – os
atuantes. Assim, dentro dela – arena como espaço liminóide – tudo se passa de modo não rotineiro, numa intensificação
da experiência do tempo presente que se opõe veementemente ao comportamento
dispersivo e difuso do cotidiano; cada gesto, movimento, canto, sonoridade e
ação são realizadas – por boa parte dos atuantes – de modo a ritualizar o
espaço. É impressionante como experiências dessa ordem conseguem acionar um
comportamento semelhante aos que simplesmente assistem: o público mesmo
apartado do espaço e da ação central manifesta respeito a sacralização do lugar
e procura manter-se em silencio respeitoso e com o mínimo de gesticulação
aleatória possível.
Um
elemento em particular, no entanto, nos dá pistas de que o espaço liminóide poderia ou poderá ser
estendido ao alcance do público: os três alguidares com banho de ervas. Dois
deles se encontram estrategicamente colocados em cada portal de entrada que nos
levará ao encontro da arena; mas nenhum tipo de preparação nos é sugerida e
nenhum tipo de orientação nos é ofertada pela equipe ou mesmo pelos atuantes.
Ficamos a mercê de nossa curiosidade na relação com este elemento tão rico pela
simbologia que porta e que é explorada, posteriormente, durante a vivência, por
ocasião do banho de purificação dos atuantes.
Importante
frisar que uso o termo “vivência” e não “apresentação” ou “representação” para
me referir ao ato proposto pelo espetáculo, posto que aquelas palavras não dão
conta da potência operada na esfera do rito e, consequentemente, pelo
desenvolvido neste espetáculo. Na experiência linimoíde se “vive intensamente” diferentemente de se “representar
intensamente”. Trata-se de uma entrega intensificada por uma experiência de
restauração da parte – o homem – com o todo – o universo – intimamente ligado à
ideia de uma dimensão harmônica e existencial perdida. Isso é possível de notar
em boa parte dos atuantes quando vemos seus corpos num processo de ritualizar o
movimento, diferentemente de alguns outros que permanecem na esfera da execução
coreográfica dos movimentos.
Ora,
mas poderíamos objetar que por se tratar de um espetáculo de Dança, realizado
por uma Companhia de Dança, nada mais natural do que assistirmos aos movimentos
tecnicamente coreografados, ou seja, nada mais natural do que os atuantes
dançarem suas coreografias. A questão que proponho, então, para refutar ou não
tal objeção é a seguinte: UM
pretende ser meramente um espetáculo de dança convencional? O que e como se
pretende dançar em UM? O que
interessa na construção da pesquisa do movimento em UM? O que se deseja ao se aproximar e se apropriar da esfera do
rito? É possível tal aproximação sem que haja mutuas trocas entre as esferas da
dança e do rito? É possível passar impune pela esfera do rito? Toda dança é
rito e vice e versa? Quando UM
deixou de ser dança para ocupar o lugar “entre” Dança e Rito?
Podemos
ensaiar parte das respostas observando o que ocorre no fragmento final da
vivência: após o ato de purificação que envolve canto e o banhar de todos os
atuantes, os mesmo despem parte de sua indumentária e se dirigem solenemente
para fora da arena, longe da vista do publico. Quando retornam, já desprovidos
do restante das indumentárias do rito, o estado que se apodera de todos é de
ordem completamente diferente do anterior: todos agora circulam pela arena em
movimentação circular e rítmica acelerada, grunhindo sons em estado de êxtase
delirante executando movimentos em sincronia notoriamente coreografada. A
transformação é tão radical na comparação com tudo vivenciado e visto
anteriormente que ouso dizer que este retorno a arena não somente não se
coaduna com a proposta desenvolvida até então, como também provoca uma mácula
no próprio percurso processual da pesquisa. Fico então, com a impressão de que
o trabalho já havia acabado antes deste último retorno dos atuantes.
Penso
este trabalho como uma confluência “entre” Dança e Rito e, por esta perspectiva,
procuro compreendê-lo como uma meta-tentativa ritual de restabelecimento da
harmonia das partes – Dança, Teatro, Música, Performance, Visualidade – com o
todo – o próprio Rito como síntese produtiva dessas artes. Se aproximar e se apropriar
da esfera do rito significa, então, suplantar as barreiras categóricas que
separam as supracitadas artes. E isso de alguma forma embaralha o jogo na
recepção do espectador, pois ele – via de regra – segue o que está estabelecido
convencionalmente, isto é, sua expectativa tenderá sempre para a recepção de um
espetáculo de dança. O grande desafio, deste modo, é saber comunicar que o jogo
no palco se estabelecerá por outros modos de percepção.
Para
tanto, um elemento de crucial importância é o itinerário de entrada e saída do
espaço ritualizado. Assim como já mencionei os alguidares no portal de entrada,
que podem ser trabalhados como elementos para preparar os que irão adentrar o
espaço sacralizado, também deve-se atentar para o modo como todos deverão ser conduzidos
de volta após o encerramento do ato.
Há
uma premissa de Aldo Natale Terrin que considero muito interessante e que tem me
auxiliado a refletir sobre as práticas artísticas que confluem para o lugar do
rito: x vale y no contexto ct. A premissa
aparentemente sisuda expressa de modo simples que na esfera do rito alguma
coisa (x) encontra-se no lugar de outra (y), mas que o jogo simbólico que
permite esta permutação depende inteiramente do contexto que é criado. Segundo
Terrin, trata-se de um jogo simbólico-místico entre uma ação (x = drómenon) e um mito (y = legómenon)
que se estabelece num contexto que permite aos que vivenciam o rito reconhecer
uma coisa (x) na outra (y). Entenda-se por contexto a determinação do tempo –
duração da ação ritual: início e fim –, preparação do espaço, dos elementos,
dos mestres de cerimônia e dos participantes. Sem a devida preparação de algum
dos elementos que constituem o contexto do rito, o próprio ficará passível de
uma recepção que comprometerá o jogo simbólico-místico proposto.
Observo
que no caso das praticas artísticas que se estabelecem na confluência com os
ritos, um contexto inadequado inevitavelmente remete a uma ação de
representação de um rito ao invés de uma ação de vivencia do rito. E minha principal
inquietação é que representar um rito leva o atuante ao falseamento do pólo mítico
(y). Vejo então, atuantes executando ações (x) tentando me convencer de que
estão desenvolvendo um mito (y) sem, no entanto, professar sua própria fé no
que executa; e isso ainda ocorre com parte dos atuantes de UM, como já mencionei anteriormente. Em outras palavras, se cada
atuante de UM não conseguir realizar
seu próprio rito pessoal, o contexto da obra pode ser ver abalado.
O
que me anima bastante ao tecer estas considerações é saber que a Companhia
Moderno de Dança encontra-se com o processo criativo em andamento e maduramente
aberta para pensar e re-pensar sua prática. Evidentemente que as considerações tecidas
aqui, longe de encerrar alguma verdade, apenas prestam-se a tencionar a obra
para o lugar de onde ela mesma se erigiu. E, neste sentido, é importante não
esquecer que a obra se erigiu “entre” a dança e o rito, lugar privilegiado para
a revisão, abstração ou mesmo a subversão de todos os valores instituídos. A
longevidade que desejo a esta obra nos dará pistas para pensarmos,
posteriormente, sobre a responsabilidade de nos reconhecermos como homens comprometidos
a reinventar mais que simplesmente as linguagens artísticas, mas recriar nossa
relação com o mundo.
Edson Fernando
21.12.2014