Montagem
teatral: A Casa do Rio, Grupo Gruta de Teatro.
Autor
da crítica: Edson Fernando, Ator diretor e coordenador do projeto TRIBUNA DO
CRETINO.
Preamar:
Elas já se encontram na casa quando chegamos. Passeiam inquietamente pelos
cômodos, como se esperassem por alguém ou por algo muito importante que talvez
esteja prestes a acontecer. A mais velha, de cabeça branca, carrega uma
gravidade serena no semblante; serenidade de quem soube cultivar o pote de
barro que abriga a sabedoria aquosa de uma geração inteira. A do meio, de
vestido vermelho, trás nos passos o peso da maturidade atravessado por memórias
traumáticas, experiências de rachar o pote da mais resistente argila que se
possa imaginar. A mais nova, de tomara que caia, embora ostente a vitalidade e
impaciência, próprios da juventude, parece harmonizar em si as energias,
angústias e expectativas das outras irmãs; o pote encontra-se de modo iminente sobre
sua cabeça e pouco há a se fazer para mudar esta situação.
A mesa, revestida de
tolha de tecido florido, permite-lhes o encontro rotineiro para as trocas.
Reúnem-se ali, ao centro da casa-cozinha-sala, acomodadas nos seus banquinhos
de madeira crua. A conversa, em tom de solilóquio-solipsista, raramente se
reverbera na troca de olhares entre elas. Fitam o infinito a sua frente, mas
não com o desejo de repousar os olhos na solidão ou no vazio, e sim com o
propósito de me encontrar na outra margem do rio que nos separa. E me encontra
sempre, por mais que eu me recuse a permanecer olhando-as de frente. O olhar
encantado das irmãs-matintas que são (?), exerce influência sobre mim, enleva a
pele, enfeitiça e paralisa o movimento das sombras platônicas que ainda povoam
a gruta de ideias constituída culturalmente em minha cabeça. Como flechas
enfeitiçadas, suas palavras cortam o ar, atravessam o rio, rompem as paredes –
a quarta, sobretudo – e conduzem meu olhar para o espelho d’água turvo que nos separa-cerca.
A natureza tem seus
truques e quis ela que nosso espelho d’água fosse feito por águas barrentas,
cujo reflexo não revelasse de modo imediato e límpido nossa imagem refletida.
Talvez uma precaução contra o possível narcisismo que poderia se desenvolver
por estas paragens. Então, olho, mas não me vejo no rio, não me reconheço
imediatamente neste espelho mágico capaz de revelar uma porção significativa do
que sou ou do que me tornei. “– Preciso me umedecer nestas águas barrentas” é a
conclusão mais dura que as três habitantes da casa me fazem perceber. Tornei-me
uma pessoa seca, numa terra, paradoxalmente, seca. É pelo olhar e pelas
palavras encantadas das três pajés (?) que percebo, então, esse ardil
estabelecido neste lugar de abundante água, com gente de natureza seca, como
eu.
E, no entanto, não
basta chegar a esta constatação. Elas desejam mais. Como se quisessem me fazer
enxergar com outros olhos, colocar em ebulição a água que existe em mim. O
aprendizado, então, vem sob forma de mnemósines. A janela-portal, ao fundo, permite
o miraculoso lapso espaço-temporal para que elas revivam suas reminiscências de
família. E no ato extraordinário de furtar o tempo presente para me fazer
aprender com o passado – seja com a brincadeira de transformar a toalha de mesa
em boi bumba, seja com as rezas e benzedeiras pra curar cobreiro – sou levado à
gruta – não platônica – de minhas pequenas lembranças.
Vazante:
Tal como a casa do rio das irmãs-curandeiras (?), nosso assoalho era de tábuas,
com abundantes e generosas frestas que permitiam ver o alagado que corria por
baixo. A vila no bairro do Jurunas, de minha infância na década de 80, era
completamente tomada por este cenário: casas de madeira construídas por sobre o
igapó nas proximidades do rio Guamá. Era divertido deitar de barriga pra baixo
e espiar, pelas frestas, as coisas que navegavam por baixo da casa: cabeças de
boneca, sacos plásticos, tufos de mato, pedaços de paus, latas de óleo, leite
ninho... A água, que por ali passava, brincava de se aproximar e se afastar do
assoalho. Havia dias em que a água estava tomada pela lama escura e não dava
pra identificar os objetos. Então, eu e meu irmão mais novo, amarrávamos um imã
num pedaço de fio, enfiávamos por entre as gretas das tábuas e disputávamos pra
ver quem pescava mais moedas de cruzeiro. Às vezes a pesca era tão boa que até
dava pra interar e comprar dois chopes de ki-suco de uva. Mas na maioria das
vezes valia mesmo só pela expectativa de pescar algo inusitado naquele rio que
passava debaixo de casa.
Tal como acontece na
casa do rio das irmãs-assombrações (?), era comum faltar luz em casa. Eu e meus
irmãos reagíamos imediatamente com medo e apreensão das coisas que poderiam
acontecer no escuro; meus pais, por sua vez, ficavam indignados com a situação
e temiam mais os vivos do que as assombrações. Corríamos pra procurar os tocos
de vela que ficavam guardados, segundo meu pai, “em cima do petisqueiro”. Três
eram acesas, no máximo, e ficavam afixadas em cima da lata de leite, e dos
potes de arroz e feijão. Quando meus pais se distraiam, brincávamos de passar o
dedo na chama da vela; me sentia o super-homem fazendo isso sem queimar o dedo.
Depois vinham as brincadeiras de criar sombras animadas que se formavam na
parede. Invariavelmente isso acabava levando as histórias de assombrações que
íamos criando na hora. Quando a luz voltava era possível ouvir os gritos de
comemoração da vizinhança inteira – coisas do tipo: gol da seleção brasileira
numa copa do mundo. Mas ainda aproveitamos uma última brincadeira com as velas
que ainda estavam acesas: reuníamos ao seu redor, catávamos o “parabéns pra
você” e, juntos, assoprávamos as velas. Era demais.
Tal como acontece na
casa do rio, eu vivia bichado com males que nenhum médico conseguia
diagnosticar. Meu principal problema, segundo atestava a sabedoria milenar de
dona Guita, era “peito aberto”. Eu ficava tomado por uma dificuldade de
realizar uma respiração profunda, me cansava muito facilmente perdendo o fôlego
para realizar pequenas peraltices de moleque, como brincar de pira mãe ou de
bandeirinha. Mamãe me tomava pelas mãos e me levava à humilde casa de madeira,
de apenas dois cômodos e de telhado de palha, da prestigiada curandeira. Por
vezes, aguardávamos na sala enquanto ela realizava suas rezas em outros
pacientes. Isso me deixava muito tenso, pois era possível escutar as ladainhas
que ela entoava no cômodo ao lado, pois a divisória era simplesmente uma
cortina de tecido florido. Chegada minha vez eu tirava a camisa, deitava de
peito pra cima e recebia as rezas de dona Guita. Enquanto rezava, ela levava
seu polegar direito contra o meu corpo e ia fazendo o sinal da cruz,
principalmente no meu peito – isso me dava uma agonia atroz e até hoje sofro
quando alguém tenta tocar no meu plexo solar. Em seguida, ela depositava uma
moeda de cruzeiro no centro do meu peito, acendia um toco vela e a colocava
sobre a moeda; cantava alguma coisa, elevava seus olhos pro céu e tapava a vela
com um copo de vidro. Eu apertava a mão da mamãe e fechava os olhos morrendo de
medo. Quando a chama da vela se apagava, dona Guita colocava um pedaço de
emplasto sabiá no centro do meu peito e fazia as mesmas recomendações de
sempre: “– Ele não pode correr e nem fazer esforço até o emplasto se descolar
completamente do corpo”. Então, eu amargava algumas semanas de tédio sem poder
brincar de verdade, como todo moleque do Jurunas.
Tal como acontece na
casa do rio, chovia bastante dentro e fora da minha casa, nos meus tempos de
garoto. Os pingos de chuva castigavam as telhas de barro do nosso telhado,
principalmente em nosso período mais chuvoso. A casa não possuía forro e os
respingos da chuva forçavam mamãe a insistir para ficarmos debaixo das
sombrinhas, mesmo dentro de casa. Outro refugio era debaixo do beliche que
transformávamos em cabanhinha, usando os lençóis como paredes. Dormir ouvindo o
barulho da chuva no telhado, sem dúvida, tornava o sono mais gostoso. Menos
pros meus pais que conseguiam enxergar a ameaça que as chuvas traziam: as águas
subiam e invadiam o assoalho, indo por vezes bater bem próximo dos colchões da
cama. Geladeira e fogão ficavam suspensos em pés improvisados de tijolos. A rua
se transformava num verdadeiro rio, se reencontrava com sua ancestralidade. O
que me cabia fazer era aproveitar para brincar com barquinhos de papel. Os
moleques da rua tinham brincadeiras bem menos inocentes: pescavam mussum para
decepar suas cabeças com terçados, pelo simples prazer de vê-los se debaterem
em espasmos até a morte. Aquela situação de “alagamento”, no entanto, não era
vista por meus pais e vizinhos, pelo olhar inocente (?) e lúdico de uma
criança. As águas eram vistas como um tormento que precisava ser superado. A
vila começou a ser aterrada. Dezenas de carradas de aterro foram usadas para
elevar o nível da vila ao da pista. Começou uma corrida entre os vizinhos para
aterrar, o mais rápido possível, o terreno debaixo de suas casas, pois ao
elevar o nível do chão da vila as águas, inevitavelmente, escorriam pra baixo
delas. Nossa casa foi uma das últimas a conseguir erradicar esse problema por completo,
levando aproximadamente uma década – e quase uma dezena de carradas de aterro –
para conseguir expulsar todo aquele rio que nos cercava. Por fim, tornei-me um
ser que lutou desesperadamente contra as águas. Queria o terreno seco. Desejei
a terra seca, o piso de concreto com lajotas, as paredes de tijolo rebocado substituindo
a madeira encharcada das tábuas podres que precisam ser substituídas com
bastante freqüência. Passei a sonhar com uma laje que me protegesse dos
respingos da chuva. Queria, a qualquer custo, alcançar o sonho de consumo de
todo Jurunense àquela altura, isto é, queria tirar o pé da água. E isso pode
ter custado muito caro pra um povo que não se deu conta de lutar contra sua
própria natureza.
O
Barco: A casa do rio, montagem teatral que comemora os
cinqüenta anos do Grupo Gruta de Teatro, proporciona um aprendizado
estético-poético inestimável para uma cidade como Belém do Pará, acostumada a
dar as costas para o rio e a culpar a chuva por suas mazelas sociais. Como um
barco navegando por nossa ancestralidade liquida, a montagem nos provoca a
olhar para as águas turvas do rio Guamá e reconhecer nelas, o espelho genuíno
capaz de nos mostrar sem véus. No entanto, não é um exercício simples de se
fazer, pois requer um ajuste de percepção que, talvez, somente a arte tenha
capacidade de proporcionar. Um dos problemas a enfrentar é saber o quanto nossa
percepção já foi assoreada, vindo a repousar nossas expectativas no porto
seguro e não no fluxo continuo do rio.
Talvez exatamente por
isso, a montagem se estabeleça, no meu entendimento, por meio de uma encenação
sensivelmente icônica que opta, com voracidade, por uma atuação
predominantemente épica. A dramaturgia – também icônica – somada à atuação
épica das três atrizes – Astrea Lucena, Monalisa da Paz e Waléria Costa, que
faço questão de citar os nomes por reconhecer que suas trajetórias artísticas
têm muito a ensinar aos que estão dispostos a fazer teatro em nossa cidade;
ensinamento estético, poético, político e, sobretudo, ético – gera um potente amalgama
criativo que não permite a contemplação incólume do público. Quem fala com
olhar estarrecedor e nos confronta na platéia não é a personagem de uma fábula
fechada, tão pouco a atuante que pretende nos provocar o efeito D, e nem a própria
pessoa das atuantes. O que se apresenta aos nossos olhos são três entidades de
realidade fantástica que agregam em si a potência e características mencionadas
acima. Apresentam-se, portanto, a meu ver, como seres capazes de nos inquirir na
atmosfera civil – sem que sua fala se confunda com um panfleto ideológico – mas
também na atmosfera estética – sem se tornar entretenimento ingênuo e casual e
nem incorrer em clichês popularescos ou folclóricos.
Seguinte esta
perspectiva, considero, no mínimo, instigante a trama na qual as três entidades
se encontram enredadas. Há entre elas a inexorável responsabilidade da
transmissão dos valores do seu tempo e lugar – o pote de barro que abriga toda
sabedoria de uma geração. Fiquei instigado a pensar estas entidades – a mais
velha, de cabeça branca, a do meio, de vestido vermelho e a mais nova, de
tomara que caia – como ícones das três últimas gerações de fazedores de teatro
na cidade. Com qual delas o Gruta se identifica? Com qual delas eu me identifico?
Com qual delas tantos outros grupos importantes da cidade – Grupo Cuíra, Cia Atores
Contemporâneos, Grupo Palha, Cia dos Notáveis Clowns, In Bust Teatro com
Bonecos, Palhaços Trovadores, Grupo Usina, Teatro de Apartamento, Grupo de
Teatro Encenação Cultural do Pará, Cia Teatral Nós Outros, Trupe Nós Os
Pernaltas, pra citar apenas alguns – se identificam?
Sinceramente não sei
responder estas perguntas, mas sei o quanto é importante saber quem carrega
atualmente o pote, se preserva a sabedoria de luta e resistência erguida na
cidade nas últimas décadas (sete pelo menos), se recolhe novos aprendizados e a
quem pretende repassar a guarda futuramente. A água preciosa chamada Teatro que
nele carregamos, precisa ser preservada e repassada as novas gerações. Qualquer
ação que negligencie este aspecto joga com o risco de não umedecer as futuras
gerações do teatro em Belém.
Preciso me umedecer pro
teatro e pra vida e a montagem teatral do Gruta me arremessa esta verdade na
cara, sem nenhuma cerimônia. Olho para a mais velha, de cabeça branca, e
encontro nela o elemento provocador que me faz querer ser cada vez mais como
ela: íntegra e intensa nas suas experiências, grave e serena com as palavras no
palco e na própria vida. Ela me transmite a ideia de que é preciso se umedecer
para bem envelhecer. Infelizmente nem todos envelhecem como o José Celso
Martinez – com vitalidade pra luta, energia anárquica e capacidade antropofágica
auto-regenerativa. Alguns envelhecem como o Luis Inácio Lula da Silva – se adaptando
as condições nefastas, preterindo as convicções ideológicas e apertando a mão
dos algozes de outrora.
Contra todas as ameaças
que pairam no horizonte, precisamos nos umedecer. Umedecer, a terra, o palco e
a vida.
25
de novembro de 2017.
Ficha
Técnica
Montagem
teatral:
A
Casa do Rio
Grupo
Gruta de Teatro
Texto:
Adriano Barroso
Direção:
Henrique da Paz
Elenco:
Astréa Lucena, Monalisa da Paz e
Waléria Costa
Cenário:
Boris Knez e Aldo Paz
Figurino:
Jeferson Cecim
Maquiagem:
Mariana Paz Barroso
Cabelos:
Germana Chalu
Iluminação:
Sonia Lopes
Assistente
de iluminação:
John Rente.
Produção:
Belle Paiva Tati Brito