AUTORA:
Karimme Silva, Psicóloga, Psicopedagoga, Atriz formada pelo Curso Técnico em
Ator da ETDUFPA e ex-bolsista do projeto de extensão PREAMAR TEATRAL.
“Bichos somos nós,
somos todos bichos.” (Animalismo)
“The Big Brother is watching you.”
(George Orwell –
1984)
O espetáculo Animalismo – A Nova Ordem Mundial,
montado no ano de 2013 pelo Grupo de Teatro Universitário retorna em 2016 para
a sua quinta temporada. Como alguém que acompanhou o processo em seu início e como
integrante do elenco nas temporadas anteriores, sempre tive a curiosidade de
vê-lo de fora. Meus questionamentos: qual o olhar desse espectador? É um olhar
de distanciamento por tratar-se de uma obra de ficção ou o de revolta por
reconhecê-lo como parte de sua realidade? Existem mais semelhanças ou
diferenças entre o olhar do atuante e do espectador – como isto chega para
ambos? Nesta obra, a cena ocorre além do espaço cênico?
Inicialmente, abro um
parêntese para a capacidade que o escritor George Orwell possui de situar o
leitor dentro de sua obra. A dramaturgia do espetáculo é inspirada em seu livro
A Revolução dos Bichos. Se observar
é absorver, literariamente, o autor traz seu leitor para esse reconhecimento.
Consequentemente, a peça também. Tanto no Animalismo
quanto em A Revolução dos Bichos,
não há como não se identificar com pelo menos algum dos personagens
apresentados: sejam os porcos e homens que tem em comum a própria sujeira, o
cavalo e a égua que trabalham até esgotarem suas forças, as ovelhas que repetem
em coro o que os ‘chefes’ querem ouvir, os cachorros e suas ações truculentas,
as galinhas que tentam escapar e mesmo assim são enganadas, o corvo/urubu com o
poder por vezes cego e punitivo da religião ou o burro que precisa se fingir de
burro mesmo, pra não incomodar os que se acham mais inteligentes. Em outra de
suas obras, intitulada 1984, Orwell
enfatiza esta questão do observar e ser observado. A questão política e os
meios de controle estão presentes nas duas maiores obras do autor, determinando
um debate sobre o que é a ficção e a realidade.
1 – Primeiramente, o
olhar “de dentro”: como atuante, estar neste espetáculo demandou acima de tudo
um preparo corporal e vocal intenso desde a sua primeira temporada. A agilidade
das cenas e o clima de tensão entre animais e humanos contribuía para esse
estado. A exaustão era extremamente necessária. Outros fatores, como iluminação
e figurino ajudavam a dar esta carga. Animalismo
é um espetáculo pesado, a começar pela sua dramaturgia. O texto traz uma
tensão, que acompanha todo o desenrolar da história até o momento em que muitos
animais já não se reconhecem como tais e buscam seus direitos em meio à
exploração. Não se trata de uma mera fábula, o melhor está nas entrelinhas. Ou
seja, a dramaturgia seguia de forma competente a obra original, provocando
estados que se alternavam entre a ignorância (do
não saber), a tristeza, o cansaço, a dor e a revolta. Estes sentimentos geravam
estados corporais, vozes e expressões faciais bem marcadas, ajudando o público
(mesmo os que não conhecem a obra) a entender o que ocorria em cena. Muitas
vezes o olhar como atuante me ajudou a entender o olhar do público: o animal
cansado e explorado provocava pena e revolta nos espectadores. Eles, em suas
cadeiras, pareciam sentir todo aquele peso. Não se sentiam confortáveis, logo,
havia o reconhecimento, a constatação de também fazerem parte daquilo. ‘Somos
todos bichos’, já dizia uma das músicas da trilha.
Nas quatro temporadas
anteriores, o Animalismo foi apresentado em vários espaços diferentes,
alterando sua dinâmica de entradas e saídas. Desde o próprio teatro até os
espaços alternativos já se desenhava esta quebra da quarta parede. Fatores como
prontidão e a consciência do espaço foram trabalhados e mudavam o rumo do
espetáculo. A Granja do Solar modificava-se a cada espaço explorado. O espaço
determinava a forma de se colocar em cena. De dentro, é importante estar atento
a todas as camadas cênicas e se perguntar: “O que estou fazendo aqui? Que
imagem pretendo passar? O que este personagem tem a dizer?” O ato cênico é
desafio e questionamento constante. Neste sentido, o Animalismo me foi (e continua sendo) uma grande escola.
2 – O olhar “de fora”:
confesso que o Animalismo foi um dos
espetáculos que mais gostei de fazer o que mais tinha vontade de assistir,
justamente por suscitar todas as questões levantadas no início deste texto. Na
condição de público, pude perceber coisas além do espaço da cena. O local da
quinta temporada (Forte do Presépio/Castelo), já mostrava essa diferença. A
história de um forte que sofreu ataques, serviu como guarnição bélica e
proteção de tropas já adiantava o contexto: no espetáculo, além das constantes
batalhas entre humano x animal e posteriormente entre porcos x outros animais,
temos a Granja dos Bichos, o espaço onde tudo ocorre, que ao ser invadida pelo
Sr. Jones e seus capangas, torna-se a Granja do Solar. Tanto na realidade
quanto na cena as invasões e a luta pelo espaço mostram sua tônica. Além disso,
um local aberto como este, demanda maior projeção vocal. Um ponto negativo foi
o atraso de meia hora no sábado, geralmente nos espetáculos atrasa-se até 15
minutos, às vezes pela bilheteria, outras vezes para esperar mais pessoas
chegarem. Mas por tratar-se de entrada franca e por já haver um grande público,
foi um tanto estranho. Nesta temporada, com o elenco reduzido, houve a
necessidade de corte de cenas e personagens; se por um lado, este elenco menor
tornou o público mais próximo e o ritmo do espetáculo mais rápido, por outro, a
ausência de personagens como o cavalo Sansão e de algumas cenas acabou deixando
a dramaturgia solta em alguns momentos. A iluminação foi um ponto forte, a
ideia de trabalhar com planos dinamizou o espaço, além de mostrar a costura
fundamental entre a cena inicial e final, que é a mesma, já no banquete. Colocar
lâmpadas sob a mesa foi um código interessante para criar o clima de celebração
por terem acabado com a granja. Se os animais são a escuridão, ser humano
metaforicamente é ser iluminado, “superior”.
Em relação à nova
trilha sonora, foram usados trechos instrumentais de rock, tanto no início
quanto nos intervalos. O rock em sua essência é música de protesto,
historicamente foi tido como um estilo subversivo, de quebra de padrões.
Combinou com um espetáculo onde a tensão exige que o som a acompanhe em alguns
momentos. O rock é selvagem, assim como o instinto dos animais e dos seres humanos
quando atacam uns aos outros. Só achei que os músicos estavam um pouco
distantes da cena, poderiam estar mais próximos.
Outro ponto importante observado
desde a primeira temporada é a habilidade do espetáculo em trazer
acontecimentos atuais para dialogar com a cena. Desta vez, as eleições tiveram
esse espaço. Destaco a ótima cena da entrada das bandeiras e de ‘candidatos’
prometendo e oferecendo seus santinhos ao público: além da quebra da quarta
parede (recurso presente em toda a peça), temos a realidade diante de nossos
olhos, quantos políticos que agem assim nós conhecemos? O mesmo valeu para a
cena das galinhas, em que cartazes como ‘Fora Napô’ e ‘É Golpe’ evidenciaram a
reação popular que a sociedade brasileira vive diante desta crise política.
Destaque para as interpretações dos personagens Major, Sr. Jones e Garganta,
principalmente para sua projeção vocal, que acompanhou o corpo e mostrou as
intenções/estados deles.
Posso dizer que na
condição de espectadora, as mesmas reações de quando atuei na peça me chegaram.
Dentro e fora de cena, senti a revolta do animal que é explorado e como
público, me percebi nessa condição. Agora, com estes olhares, vejo o quão
estamos próximos. O que ocorre em cena é
o que ocorre na realidade, a obra (por seu conteúdo, atemporal) nada mais é que
um reflexo do que se vive socialmente, politicamente, economicamente. Não há
distanciamento. De acordo com Fernando Pexito (1980), “Brecht recusa o espetáculo
como hipnose ou anestesia: o espectador deve conservar-se intelectualmente
ativo, capaz de assumir diante do que lhe é mostrado a única atitude
cientificamente correta – a postura crítica”. O fazer teatral é um ato político
e crítico, bem como a capacidade de observação e reconhecimento de seu público,
que neste caso, é tão atuante quanto. Não há passividade, o observador também
executa. A arte só funciona quando toca. No Animalismo, o público sai da sua zona de conforto. O objetivo
(felizmente alcançado) é esse. É um espetáculo que sempre tem muito a dizer. O
espectador se reconhece, mas acima e antes de tudo, pertence. Não há exatamente
o ‘dentro’ ou ‘fora’, todos estão no processo. Reconhecer é ser.
O que é mais presente do que a forma? Eu estou numa autêntica relação
com ela; pois ela atua sobre mim assim como EU atuo sobre ela. Fazer é criar,
inventar é encontrar. Dar forma é descobrir. Ao realizar EU descubro. EU
conduzo a forma para o mundo do ISSO. A obra criada é uma coisa entre coisas,
experienciável e descritível como uma soma de qualidades. Porém, àquele que
contempla com receptividade ela pode amiúde tornar-se presente em pessoa.
(BUBER, 1974, p. 32)
Com
todo o seu elenco modificado, Animalismo
dá a oportunidade destes novos atuantes (que um dia foram espectadores) de
exercitarem seu olhar cênico para além de pouco mais de uma hora de peça. Com
novos atores, o espetáculo retorna com um fôlego diferente. É a chance de serem
estes animais e de observarem também pelos dois olhares: tanto o olhar do
“animal” em cena através de uma obra que fala da sociedade quanto o olhar do
“humano” que assiste e se reconhece como parte dessa sociedade por vezes
injusta e cruel. O que Orwell propõe é uma reflexão da condição do homem, um
pensar crítico e acima de tudo, o reconhecimento. Como atuante e espectadora,
consegui me reconhecer ali. Neste lugar do Outro que também é meu, pois o Outro
sou Eu vista de um ângulo diferente. Chega um momento onde é impossível distinguir
o ator do espectador: todos ficam sob o mesmo estado. No final das contas, eu
olho de um porco pra um homem e já não sei distinguir quem é homem e quem é
porco. Assim como chega um momento em que não consigo (me) diferenciar como
atuante ou espectadora. Mesmo olhando ‘de fora’, estamos mais dentro do que
nunca. Então, diluem-se as distâncias simbólicas. Mesmo sendo humanos, ainda somos
todos bichos.
Karimme Silva
26 de Setembro de 2016
26 de Setembro de 2016
REFERÊNCIAS
BUBER, Martin. Eu e Tu.
Tradução por Newton Aquilles Von Zuben. 2ª edição. Editora Moraes, 1974.
PEIXOTO, Fernando. O
que é teatro. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 1980.
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