segunda-feira, 26 de setembro de 2016

O Outro (no) Eu ou “Somos Todos Bichos” – por Karimme Silva

AUTORA: Karimme Silva, Psicóloga, Psicopedagoga, Atriz formada pelo Curso Técnico em Ator da ETDUFPA e ex-bolsista do projeto de extensão PREAMAR TEATRAL.

“Bichos somos nós, somos todos bichos.” (Animalismo)
“The Big Brother is watching you.” (George Orwell – 1984)

O espetáculo Animalismo – A Nova Ordem Mundial, montado no ano de 2013 pelo Grupo de Teatro Universitário retorna em 2016 para a sua quinta temporada. Como alguém que acompanhou o processo em seu início e como integrante do elenco nas temporadas anteriores, sempre tive a curiosidade de vê-lo de fora. Meus questionamentos: qual o olhar desse espectador? É um olhar de distanciamento por tratar-se de uma obra de ficção ou o de revolta por reconhecê-lo como parte de sua realidade? Existem mais semelhanças ou diferenças entre o olhar do atuante e do espectador – como isto chega para ambos? Nesta obra, a cena ocorre além do espaço cênico?
Inicialmente, abro um parêntese para a capacidade que o escritor George Orwell possui de situar o leitor dentro de sua obra. A dramaturgia do espetáculo é inspirada em seu livro A Revolução dos Bichos. Se observar é absorver, literariamente, o autor traz seu leitor para esse reconhecimento. Consequentemente, a peça também. Tanto no Animalismo quanto em A Revolução dos Bichos, não há como não se identificar com pelo menos algum dos personagens apresentados: sejam os porcos e homens que tem em comum a própria sujeira, o cavalo e a égua que trabalham até esgotarem suas forças, as ovelhas que repetem em coro o que os ‘chefes’ querem ouvir, os cachorros e suas ações truculentas, as galinhas que tentam escapar e mesmo assim são enganadas, o corvo/urubu com o poder por vezes cego e punitivo da religião ou o burro que precisa se fingir de burro mesmo, pra não incomodar os que se acham mais inteligentes. Em outra de suas obras, intitulada 1984, Orwell enfatiza esta questão do observar e ser observado. A questão política e os meios de controle estão presentes nas duas maiores obras do autor, determinando um debate sobre o que é a ficção e a realidade.
1 – Primeiramente, o olhar “de dentro”: como atuante, estar neste espetáculo demandou acima de tudo um preparo corporal e vocal intenso desde a sua primeira temporada. A agilidade das cenas e o clima de tensão entre animais e humanos contribuía para esse estado. A exaustão era extremamente necessária. Outros fatores, como iluminação e figurino ajudavam a dar esta carga. Animalismo é um espetáculo pesado, a começar pela sua dramaturgia. O texto traz uma tensão, que acompanha todo o desenrolar da história até o momento em que muitos animais já não se reconhecem como tais e buscam seus direitos em meio à exploração. Não se trata de uma mera fábula, o melhor está nas entrelinhas. Ou seja, a dramaturgia seguia de forma competente a obra original, provocando estados que se alternavam entre a ignorância (do não saber), a tristeza, o cansaço, a dor e a revolta. Estes sentimentos geravam estados corporais, vozes e expressões faciais bem marcadas, ajudando o público (mesmo os que não conhecem a obra) a entender o que ocorria em cena. Muitas vezes o olhar como atuante me ajudou a entender o olhar do público: o animal cansado e explorado provocava pena e revolta nos espectadores. Eles, em suas cadeiras, pareciam sentir todo aquele peso. Não se sentiam confortáveis, logo, havia o reconhecimento, a constatação de também fazerem parte daquilo. ‘Somos todos bichos’, já dizia uma das músicas da trilha.
Nas quatro temporadas anteriores, o Animalismo foi apresentado em vários espaços diferentes, alterando sua dinâmica de entradas e saídas. Desde o próprio teatro até os espaços alternativos já se desenhava esta quebra da quarta parede. Fatores como prontidão e a consciência do espaço foram trabalhados e mudavam o rumo do espetáculo. A Granja do Solar modificava-se a cada espaço explorado. O espaço determinava a forma de se colocar em cena. De dentro, é importante estar atento a todas as camadas cênicas e se perguntar: “O que estou fazendo aqui? Que imagem pretendo passar? O que este personagem tem a dizer?” O ato cênico é desafio e questionamento constante. Neste sentido, o Animalismo me foi (e continua sendo) uma grande escola.

2 – O olhar “de fora”: confesso que o Animalismo foi um dos espetáculos que mais gostei de fazer o que mais tinha vontade de assistir, justamente por suscitar todas as questões levantadas no início deste texto. Na condição de público, pude perceber coisas além do espaço da cena. O local da quinta temporada (Forte do Presépio/Castelo), já mostrava essa diferença. A história de um forte que sofreu ataques, serviu como guarnição bélica e proteção de tropas já adiantava o contexto: no espetáculo, além das constantes batalhas entre humano x animal e posteriormente entre porcos x outros animais, temos a Granja dos Bichos, o espaço onde tudo ocorre, que ao ser invadida pelo Sr. Jones e seus capangas, torna-se a Granja do Solar. Tanto na realidade quanto na cena as invasões e a luta pelo espaço mostram sua tônica. Além disso, um local aberto como este, demanda maior projeção vocal. Um ponto negativo foi o atraso de meia hora no sábado, geralmente nos espetáculos atrasa-se até 15 minutos, às vezes pela bilheteria, outras vezes para esperar mais pessoas chegarem. Mas por tratar-se de entrada franca e por já haver um grande público, foi um tanto estranho. Nesta temporada, com o elenco reduzido, houve a necessidade de corte de cenas e personagens; se por um lado, este elenco menor tornou o público mais próximo e o ritmo do espetáculo mais rápido, por outro, a ausência de personagens como o cavalo Sansão e de algumas cenas acabou deixando a dramaturgia solta em alguns momentos. A iluminação foi um ponto forte, a ideia de trabalhar com planos dinamizou o espaço, além de mostrar a costura fundamental entre a cena inicial e final, que é a mesma, já no banquete. Colocar lâmpadas sob a mesa foi um código interessante para criar o clima de celebração por terem acabado com a granja. Se os animais são a escuridão, ser humano metaforicamente é ser iluminado, “superior”.
Em relação à nova trilha sonora, foram usados trechos instrumentais de rock, tanto no início quanto nos intervalos. O rock em sua essência é música de protesto, historicamente foi tido como um estilo subversivo, de quebra de padrões. Combinou com um espetáculo onde a tensão exige que o som a acompanhe em alguns momentos. O rock é selvagem, assim como o instinto dos animais e dos seres humanos quando atacam uns aos outros. Só achei que os músicos estavam um pouco distantes da cena, poderiam estar mais próximos.
Outro ponto importante observado desde a primeira temporada é a habilidade do espetáculo em trazer acontecimentos atuais para dialogar com a cena. Desta vez, as eleições tiveram esse espaço. Destaco a ótima cena da entrada das bandeiras e de ‘candidatos’ prometendo e oferecendo seus santinhos ao público: além da quebra da quarta parede (recurso presente em toda a peça), temos a realidade diante de nossos olhos, quantos políticos que agem assim nós conhecemos? O mesmo valeu para a cena das galinhas, em que cartazes como ‘Fora Napô’ e ‘É Golpe’ evidenciaram a reação popular que a sociedade brasileira vive diante desta crise política. Destaque para as interpretações dos personagens Major, Sr. Jones e Garganta, principalmente para sua projeção vocal, que acompanhou o corpo e mostrou as intenções/estados deles.
Posso dizer que na condição de espectadora, as mesmas reações de quando atuei na peça me chegaram. Dentro e fora de cena, senti a revolta do animal que é explorado e como público, me percebi nessa condição. Agora, com estes olhares, vejo o quão estamos próximos.  O que ocorre em cena é o que ocorre na realidade, a obra (por seu conteúdo, atemporal) nada mais é que um reflexo do que se vive socialmente, politicamente, economicamente. Não há distanciamento. De acordo com Fernando Pexito (1980), “Brecht recusa o espetáculo como hipnose ou anestesia: o espectador deve conservar-se intelectualmente ativo, capaz de assumir diante do que lhe é mostrado a única atitude cientificamente correta – a postura crítica”. O fazer teatral é um ato político e crítico, bem como a capacidade de observação e reconhecimento de seu público, que neste caso, é tão atuante quanto. Não há passividade, o observador também executa. A arte só funciona quando toca. No Animalismo, o público sai da sua zona de conforto. O objetivo (felizmente alcançado) é esse. É um espetáculo que sempre tem muito a dizer. O espectador se reconhece, mas acima e antes de tudo, pertence. Não há exatamente o ‘dentro’ ou ‘fora’, todos estão no processo. Reconhecer é ser.

O que é mais presente do que a forma? Eu estou numa autêntica relação com ela; pois ela atua sobre mim assim como EU atuo sobre ela. Fazer é criar, inventar é encontrar. Dar forma é descobrir. Ao realizar EU descubro. EU conduzo a forma para o mundo do ISSO. A obra criada é uma coisa entre coisas, experienciável e descritível como uma soma de qualidades. Porém, àquele que contempla com receptividade ela pode amiúde tornar-se presente em pessoa. (BUBER, 1974, p. 32)

Com todo o seu elenco modificado, Animalismo dá a oportunidade destes novos atuantes (que um dia foram espectadores) de exercitarem seu olhar cênico para além de pouco mais de uma hora de peça. Com novos atores, o espetáculo retorna com um fôlego diferente. É a chance de serem estes animais e de observarem também pelos dois olhares: tanto o olhar do “animal” em cena através de uma obra que fala da sociedade quanto o olhar do “humano” que assiste e se reconhece como parte dessa sociedade por vezes injusta e cruel. O que Orwell propõe é uma reflexão da condição do homem, um pensar crítico e acima de tudo, o reconhecimento. Como atuante e espectadora, consegui me reconhecer ali. Neste lugar do Outro que também é meu, pois o Outro sou Eu vista de um ângulo diferente. Chega um momento onde é impossível distinguir o ator do espectador: todos ficam sob o mesmo estado. No final das contas, eu olho de um porco pra um homem e já não sei distinguir quem é homem e quem é porco. Assim como chega um momento em que não consigo (me) diferenciar como atuante ou espectadora. Mesmo olhando ‘de fora’, estamos mais dentro do que nunca. Então, diluem-se as distâncias simbólicas. Mesmo sendo humanos, ainda somos todos bichos.
Karimme Silva
26 de Setembro de 2016


REFERÊNCIAS
BUBER, Martin. Eu e Tu. Tradução por Newton Aquilles Von Zuben. 2ª edição. Editora Moraes, 1974.

PEIXOTO, Fernando. O que é teatro. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 1980. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário