Credenciais do Autor: Professor de Teoria
do Teatro da escola de Teatro e Dança da UFPA.
O
primeiro contato parece costumeiro e pouco revelador: sete jovens de estatura
mediana (quatro homens e três mulheres), franzinos – em sua maioria –, gente
que traz no corpo os traços miscigenados de origem indígena, africana e
européia; o tambor, com traços de cerâmica marajoara, destaque-se entre os
instrumentos e compõe a paisagem visual, em forte alusão a cultura amazônica;
tudo indica apenas mais uma intervenção artística em louvor aos orixás e as
matrizes afro-amazônicas que aqui se estabeleceram. Os primeiros toques do
tambor não inauguram nada que possamos identificar como novidade, salvo o
advento do rito que tem seu início naquele instante. Num breve lapso de tempo o
eco tímido do tambor opera a transfiguração do lugar, da paisagem e,
fundamentalmente daquela gente simples que agora se vê envolvida, ou mesmo
instala em si, a atmosfera do sagrado. A sonoridade convoca as vozes dos seis
recém-iniciados que, rompendo o silêncio inicial, entoam o pedido de abertura
dos caminhos; uma espécie de transe primitivo lhes dilata os poros, expande
suas mentes e, com o passar do tempo, me esmaga na cadeira. Não os reconheço
mais, pois suas identidades cotidianas ficam em suspenso e deixam fluir o
autêntico demônio – na acepção primitiva, aquele que tem acesso a uma luz
transcendente, uma espécie de “iluminação superior às normas habituais,
permitindo ver mais longe e com mais segurança” (CHEVALIER, 2007, p.329) – que
lhes habita. É uma nova espécie de gente que me confronta: GEMTE-Demônio capaz
de colocar em perspectiva de forma arrebatadora valores culturais, crendices e
manifestações populares, espiritualidade, ética e arte; GEMTE-Demônio que não
pede licença para rasgar os alicerces de nossas certezas narcísicas e
logocêntricas; a eles não cabe o sussurro terno, mas a vociferação; a
estupefação no lugar da epifania mansa; o urro incontido de dor voltando-se
contra a opressão dissimulada, contra o preconceito velado e asqueroso; como
dançarinos suicidas à beira do abismo, essa GEMTE-Demônio convida a bailar, Dança-Cruel
para triturar os órgãos falidos da cultura; mas também brinca de roda essa
GEMTE-Demônio, afrouxando o arco voltaico no momento exato de saturação do pólo
oposto e, então, de suicidas dançarinos se transportam, sem cerimônia, para a
dimensão dos gêmeos Cosme e Damião, momento lúdico do folguedo do boi e da
contação dos causos. Quem é essa GEMTE-Demônio que assusta e encanta, brinca e
pune, afaga e machuca celebrando a vida sem abrir mão dos ensinamentos da dor?
Parte destas questões
encontra solução simples se perguntarmos quem são os realizadores da montagem
teatral intitulada “Da cabeça aos pés”. Trata-se do GeMtE – Grupo Experimental de Teatro. O grupo já soma seis anos de
pesquisas voltadas à montagens teatrais marcadas pelo desejo de aproximação do
teatro com as linguagens da dança, artes plásticas, performance, música e
audiovisual. Em “Da cabeça aos pés”, este projeto efetiva-se, particularmente,
pela excelente trama envolvendo dança e música. A direção da obra, e também do
grupo, é assinada por Keila Sodrack, atriz que já dividiu o palco comigo, há
tempos atrás, e que agora apresenta um sólido e consistente trabalho de direção
teatral. Sodrack brinda-nos com uma obra livre de excessos formalistas que, via
de regra, tende a aprisionar projetos desta natureza ao experimentalismo fortuito
e gratuito. Sob a batuta da diretora tudo parece milimetricamente calculado e
planejado: a movimentação precisa dos atuantes, as canções, a visualidade dos
poucos adereços cênicos, o palco vazio, a não linearidade das cenas encadeadas
de modo a valorizar o efeito de clímax em determinados momentos – muito
particularmente na passagem da cena da negra Anastácia para a, imediatamente
posterior, cena que retrata o folguedo do Boi Bumbá – seguido do necessário
relaxamento da curva dramática da montagem. Este último elemento é o que mais se
destaca merecendo atenção e louvor, pois demonstra um apurado trabalho de
direção tanto no trato de cada parte da obra – isto é, um olhar sensível para
tencionar o necessário em cada cena – quanto no trato do todo – isto é, um
olhar sensível para ajustar as diversas partes num todo coeso e vigoroso.
Outro elemento que
impressiona e traz satisfação é o modo como Keila dirige a montagem indo ao
encontro da fundamentação teórica que alicerça a pesquisa, isto é, o universo
das encantarias afro-amazônicas sem, no entanto, incorrer numa linguagem
hermeticamente voltada para os iniciados nas manifestações afro-religiosas.
Certamente há na montagem teatral uma série de códigos e símbolos que somente
podem ser lidos por aqueles que conhecem ou vivenciam a prática dos terreiros
afro-religiosos. Não é o meu caso. Sou absolutamente ignorante nesta matéria,
não sabendo identificar nem mesmo uma das divindades mais cultuadas nestes
terreiros, Yemanjá. Lamento a ignorância e reconheço que, em certa medida, ela
é fruto de uma bem sucedida estratégia de perseguição a estas práticas
religiosas, estratégia esta que se encontra impregnada na educação brasileira,
infelizmente, ainda hoje. A questão que merece destaque, contudo, encontra-se
no fato da montagem fundar sua potência criativa no universo das encantarias
afro-amazônicas, mas não se limita e nem se esgota somente nelas. Elas são – as
encantarias – por assim dizer, o trampolim que permite dar o salto para
articular questões universais, nos atando àquilo que ainda nos torna membros de
uma mesma comunidade: nossa humanidade. Nesta instância, o olhar não persegue
mais os códigos de origem e sim a operação alquímica efetuada por esta
GEMTE-Demônio em cena. É isto que me prende, fascina e assola.
Estamos, portanto,
tratando agora do campo em que a direção pouco pode fazer para colaborar, salvo
observar atentamente e cuidar para que o sagrado não seja profanado pelos
deslizes formais da montagem. Falo da alquimia efetuada pelos sete atuantes em
cena a partir do que identifico ser um processo antropofágico estabelecido entre
som e movimento. De um lado temos seis atuantes repletos de vigor e
pré-expressividade – Alice Alves, Andrey Sales, Ca Brito, Nana Alcoforado,
Wagner Guimarães e Yuri Granha; do outro o atuante-percussionista Diego Vattos
construindo uma poderosa atmosfera sonora. Inútil e desnecessário dizer qual
das partes é indutora do processo, pois há na verdade um ponto de convergência
brutalmente marcado por um impulso antropofágico no qual vemos o som devorando
os atuantes, mas também os atuantes devorando o som numa retroalimentação sem
início e fim determináveis. Assim, a intervenção sonora da percussão
intensifica e relaxa cada momento da montagem, mas também é intensificada pela
dilatação pré-expressiva dos seis atuantes. Esta é uma das chaves da operação
alquímica oferecida por esta GEMTE-Demônio.
Os atuantes merecem créditos
também por não enveredarem, em nenhum momento, para uma representação mimética
dos papeis cênicos que desempenham. Depois de instalar um espaço genuinamente
liminar no palco, não há nada a ser representado; tal como pretendia o
visionário francês Antonin Artaud, o que nos é oferecido no palco “é a própria vida
no que ela tem de irrepresentável” (DERRIDA, 1995, p. 45). É nesta perspectiva
não representacional que a montagem ganha ainda mais vigor ao não se deixar
envolver por armadilhas recorrentes que, invariavelmente, ocasionam a simples
reprodução da espetacularidade dos ritos. Não acredito nesta via, pois o rito
não presta a imitações espetaculares, se vivencia fenomenologicamente.
Feitas estas
considerações arrisco uma reposta acerca dessa GEMTE-Demônio: é o tipo de gente
que mantém filiação com a tradição dos dançarinos metafísicos balineses, com o
dançarino epilético mexicano proveniente das terras dos índios Tarahumaras, ou
ainda com o autêntico praticante do atletismo afetivo. Esse tipo de gente me
encanta, pois possuem a nobre arte de nos fazer gritar. E em meio à letargia
reinante precisamos muito dessa GEMTE-Demônio provocando gritos de dor,
alegria, angústia, indignação, horror, afeto, tristeza. Precisamos reaprender a
gritar.
Edson
Fernando
14
de Dezembro de 2015.