Rosilene
Cordeiro: Atriz-performeira amazônida, realizadora de cena entre a urb e os rios
da grande floresta. Icoaraci-Belém/PA. #terreiroeomundo
Ao que me parecia, de
princípio, era que se referia apenas ao convite para uma vivencia sensorial ao
estilo experimentação, como é da alçada investigativa do renomado diretor do
espetáculo, Nando Lima. Experimentação,
talvez, sobre a mesma sensação que busco recuperar aqui, ou não, diante da
oportunidade de re-ouvir a composição em áudio proposta como trilha sonora do
espetáculo[1],
agora na condição de escriba, ao escrever esses rabiscos de memória falha e
pontual. Sonoridade sem a qual, ao meu ver, essa empreitada perde todo seu viço
memorial.
Sinergia labiríntica em
ondas sonoras girantes como círculos em aspiral decrescente para dentro, para o
fundo do mínimo, entre rumores contro_versos de uma saliência sonora
inquietante. Talvez (reforço, talvez, eu diria e você entenderá mais adiante
porque tanto talvez!) em busca de uma camada de lógica que seja, isso como um
certo alívio pós-espetáculo; desses que inconsciente se faz ao término das
peças teatrais, quando findos a leitura da ficha técnica e dos agradecimentos
pessoais e institucionais como é de praxe.
De outro modo e não
longe disso, observo a ab_surda exigência milimétrica consciente, essa da escrita padrão, patronal do pensamento
humano!
Converso comigo: “Ora,
não sabes que tudo que é ouvido não pode ser des/transcrito em letras? E que
toda escrita se presta ao assentamento dela mesma, depondo infalivelmente em
seu próprio favor enquanto linguagem? E ao mesmo em que se registra, nesse ato
supremo, se priva, se nega outra possibilidade dentro desse escrito fechado
sobre ela mesma, ao menos que se abra em outras linhas essa adesão consentida?”
No entanto, esse é um
relato de ‘ao contrário’, falível logo na entrada, questionável em sua validade,
acusador de toda propriedade absoluta disso que chamo ‘minhas impressões’. Vai
de encontro a tudo que se titule uno, definidor, verdadeiro, por assim dizer. É
preciso que eu declare essa tentativa de corte com as convenções canônicas do
verbo escrito, para inviabilizar qualquer julgamento precipitado futuro por
parte do meu leitor acerca do que eu escrevo. Porque escrever sobre sensações é
demasiado grande para mim! Mas aqui me presto a isso, logo, me arrisco.
Era 28 de junho, 20h20’,
em Belém do Pará, num espaço relativamente novo a mim “Da Tribu”, seu nome,
localizado no centro da noite na cidade, no dia de Pedro, o São Pedro de junho,
embadeirador de mastros, maestro de bandeirinhas coloridas no céu vazado, o que
também se assistia no espaço anterior da sala que se emprestou ao espetáculo
que tinha no elenco um duo de atores, já veteranos da cena artístico-teatral da
cidade de Belém: Maurício Franco e Sandra Perlin.
Estive no último dia de
audiência da segunda temporada do espetáculo teatral Assim
Seja... O Divino HighTech (ou o inverso, isso em
nada alterando-o, por certo! O nome é bastante inquisidor) um espetáculo sonoro,
de muitas palavras mudas e um inaudível óbvio inebriante de falas interiores,
sucedidos por óbitos de cenas aparentemente caçadoras umas das outras.
A
experiência me conduziu por uma trilha gestual silencio - ruidosa sem fim. Dois
atores em cena, dois amigos e cúmplices de longa jornada artística teatral (quiçá
ancestre, talvez! Porque é clara para quem os conhece, o jogo previsível e
brilhantemente combinatório desses que
já dividiram muitos palcos e inúmeras temporadas ao lado um do outro). Ante seu
público, naquela noite ralo, porém comprometido, acomodado à boca de cena num
espaço favoravelmente íntimo e intimamente violado pela assistência visual instaurado
àquela hora de angústia e poesia.
Uma
ladainha à São João? É isso que ouço ao longe? Rastros, sonoplastia sinistra a
nos raptar para o fundo do ouvido... e quanto mais entramos no ouvido, tão mais
o corpo se declina para a frente em busca de uma espécie de pão que alimente
nossa fome curiosa pelo ‘que se diz’. Talvez resolvido por um simples barulho
reconhecível de pacote de biscoitos...talvez!
Em
alguns momentos sinto que a casa nos lê em cena, dentro de dentro, como livros
revirados, como expectantes arredios tragados pra dentro da ‘casa’ e lá
esmiuçados em partículas cada vez menores, sendo unicamente nutridos pela bolsa
(objeto cenográfico) que não cessa em oferecimentos como preces vindas da alma.
Visualmente, como cães famintos pelos olhos nos encontramos à beira exata do
osso, do único e ampliado osso que se oferece a nós, a cena: de um que serve,
de uma que é servida e de todos sedentos esperando o ‘próximo prato’.
E é
sobre visualidades, audiências, sensações e interações reais e oníricas que se
dão esses bailados vibrantes em ondas tecnomagnéticas sugestivas de fugas de
dois atu_antes -ou três, ou muitos- a dividir os uivos de colina da hora
ausente.
E onde
estamos? Que lugar é esse? Quem são esses que dividem comigo a sede, a fome, o
grito, o sussurro, a montanha e o fosso? “Nenhuma voz em meu auxílio!”
Um
trabalho sonoro coletivo à medida que reinventa a palavra nas coisas, em que
cria hipertextos narradores de um ‘onde’ não localizado, de um tempo preciso na
imprecisão das inúmeras divagações [in]possíveis e inventadas para nos agarrar
em algo palpável, que nos salve do abismo de nossas certezas.
Mas, onde
estavam as opções que o release assinara que eu teria? E por ventura, não é um
release, já, em si mesmo, um encaminhamento ‘a pedra no meio do caminho’, ‘um
ter por onde ver’ o espetáculo? O mínimo imediato que guia a lupa do ‘comecemos
por aqui’?
Só que
eu não me quis ver! Eu recusei a lupa.
Muito
provavelmente, nesse momento, o instrumento mais apropriado fosse o fone de
ouvido! E era. Eu estava ali para ler o silencio da vista e interpretar os sons
distantes e confusos da minha real_idade vencida pelo relógio cênico.
“Está
doendo demais, a falta que você faz!”... (ao fundo, de fundo turvo, desajeitado
e torto, confundindo-se propositalmente com outros ruídos e vozes) nesse
longe-perto-dentro-fundo ouvia-me, a mim mesma, gritando em coro com o Roberto
Carlos. Que doido! “Sua estupidez, não deixa ver que eu te amo! Meu bem, meu
bem...”
Não, senhoras
e senhoras, eu não estava enlouquecendo! Sentia-me de volta ao que parecia um
lugar que vou chamar de casa, ao quarto, à sala, visitando a cozinha e
alojando-me, confortavelmente, no depósito das minhas frustrações e aspirações
guardadas. Uma casa, uma nave, um porão, o céu e o inferno que eu nunca vira,
mas que me pertencia por completo. E eu estava ali, em cena, desmanchando-me em
cada gesto dos atores, em cada respiração de cada espectador.
Poemácias
em coro como cachoeira ou erva daninha se alinhando no vazio em que vez o outra
me surpreendia suspensa e imóvel. E as leituras advindas propunham interpenetrar
nossos abismos existenciais, isso para quem o quisesse fazê-lo. Eis-me,
novamente, frente ao estado de platéia! No alto do pico afunilado para o alto de minhas
prementes indagações sem eco, rasgando o infernal divinizado de mais e mais especulações
sem tréguas e o vazio. E a eminente queda logo mais adiante. E as vozes em
ruídos e música se avolumavam: Todo o tempo é de poesia.
Desde a arrumação do Caos à confusão da harmonia, sussurrava- me o poeta Antonio Gedeão.
O texto
versa sobre amores, fugas, dissabores, organicidade, rejeições, fluidos, reclusão,
ranhuras, sombra e apelos sinestésicos emparedando-nos numa câmera em que o ar,
imperceptível e totalmente sentido, virou aroma, tinha cor, pôde ser degustado
na saliva escorregadia no rosto do ator.
Clássico
e contemporâneo o tempo espetacular, nesse espetáculo, vai se esgarçando com o
a sonoplastia proposta, se abrindo em gomos, potencialmente comestíveis e
recusáveis, sob o esgarçamento de uma narrativa quente, adocicada pelo texto
não oralizado.
Experimentalismo
e técnica, maestria dual sob a batuta barulhenta de seu maestro conduzindo-os a
uma liberdade onírica selam esta poética do tempo homilateral diante dele
mesmo: ser diante do espelho cativando a própria sorte, desfolhando-a uma a uma
como sua e a nossa sina re-tratadas pela arte.
Livro,
óculos, chama, água, assento... assento, ruídos, risos e chama... passos,
roupas (paramentos?), choro...recorrência musical, braços, pés, idas e
vindas...e o som! Incomodativo, orgásmico e inquietante som.
O som
em ondas... serpente dançante a celebrar o audível desconhecido. “Que cobra é
essa que se enreda à própria cauda, introduzindo-se seu próprio veneno e
deixando-se curar por ele? Que tal uma dança enquanto tudo se desfia? Uma
viagem audiovisual onde tudo se acentua e o corpo nu da atriz se cola no tempo
da nossa retina pendurando-nos na parede imagética do caos celeste que a sua
pele nua nos impõe. Trama erótica, eu diria! Sim, porque o Maurício e a Sandra
se conhecem muito bem para não precisarem omitir seus gestos em personalidades
acomodadas e restritas ao qual alguns chamam ‘personagens’ e outros dirão
‘máscaras’. São sui generis, dão-se
apenas. Sexualidades expostas, emoções digeridas a dois, vomitadas por outros.
Cuidados,
não há senhoras e senhores, eu diria igualmente, sob toda sorte de errar do
mesmo modo! Diante de mim o que li e leio são corpos em busca de si no outro,
um no outro, a reclamar o nosso para a
carnificina gestual mais profunda do ato teatral. Estamos diante do banquete,
onde degustamos e somos degustados! “E quanto idiotas vivem só sem ter amor?” o
Roberto Carlos entra em som a assombrar-nos a dúvida maldita. E de novo a vida
vem, em jato, inteirinha, numa única jogada, ejaculação na nossa cara que
parece tudo conhecer. E aí eu me vejo a carne sobre a mesa...e eu sou o prato,
e a servente.
O
convite foi para um teatro na laje (acredito que uma alusão poética ao espaço
cênico em uma laje, propriamente dita; um tetro que sobe uma escada, que se dá
no andar de cima.) E como dizer ‘desse
átrio que entra e se afunda’ dentro dele? Que tira-nos a clareza da luz, a
nitidez do som, a certeza de uma verdade sobre essas qualidades e coisas, do
desejo de um sentimento leve ao de final do ato, sexual-teatral?
Masterização
dos órgãos vitais em malha de tecidos finos, em lâminas quebradiças de imagens circunstanciais
pueris, que vem e vão antes que as reconheçamos como nossas, e são! E assim, o
todo vai se desnovelando, (re) afinando-se e diluindo-se em instantes de ilusão
ótica que se vão como folhas ao vento, pelo sopro do tempo. Nada é o que
parece. Fomos ordinariamente enganados! Ei-nos ao fim em que as escadas
entregam-se aos atores e a penumbra nos enreda como peixes em curral.
“O que ficou de nós?” Fomos
e voltamos. E ante nós a impiedosa crueza da infinitude do tempo É. E novamente
o poema vem me assombrar:
“Em minha sepultura, ó meu amor, não plantes
Nem cipreste, nem rosas; nem tristemente
cantes.
Sê como a erva dos túmulos. Que o orvalho umedece.
E se quiseres, lembra-te. Se quiseres,
esquece.
E
assim, Manuel Bandeira, outro poeta vem á mente e decide por mim. A minha única
opção, de fato: lembrar-me para esquecer-te. De vez? E como? GAME OVER! THE END
sem legendas.
E
alguns prováveis outros fins. Retiro os fones. Vou-me em ondas.
OFF [...]