Espetáculo: De dentro.
Montagem: Cia Experimental de
Dança Waldete Brito.
Credenciais do autor da crítica: Edson Fernando -
Ator e diretor Teatral, Prof. de Teoria do Teatro da ETDUFPA, atua no COLETIVO
DE ANIMADORES DE CAIXA e como pesquisador no GITA – Grupo de Investigação do
Treinamento Psicofísico do Atuantes.
Seis
mulheres. Seis portas. Amores, dores, laços desfeitos, encontros interrompidos,
tensos triângulos, dança com a solidão. A urgência da travessia se impõe desde
cedo; as portas se abrem para revelar o estranho abrigo que acolhe as damas –
por ora – solitárias: o vazio negro, a desoladora solitude de quem perdeu o par
no baile trágico das paixões.
–
Deixo pra trás a dor da saudade! Parto rumo ao desconhecido na certeza de levar
comigo somente a metade que me liberta de ti.
É
o que parecem gritar as seis damas por meio da poesia de seus gestos e movimentos.
Não demora muito para conhecermos os demais habitantes deste abrigo sombrio:
dois cavalheiros e outras duas damas que se juntam as seis primeiras para
dançar “o lugar entre” estabelecido pelas seis portas.
A
proposta de experimentação cênica delineada, de modo breve, acima é da Cia
Experimental de Dança Waldete Brito. Trata-se do espetáculo intitulado De dentro, uma das primeiras montagens
do repertório da Cia que completa em 2013 quinze anos de pesquisa-artística
ininterrupta. Dirigida pela professora Waldete Brito a Cia se notabiliza ao
longo destes anos pelos processos de criação em Dança Contemporânea
desenvolvidos de modo colaborativo com os atuantes, tendo como principal
procedimento criativo a técnica da improvisação.
Em
De dentro a vitalidade da encenação
assenta-se exatamente no jogo estabelecido com, e a partir da cenografia. As
seis portas que também se transformam em janelas e pequenas passagens
inferiores oferecem aos atuantes uma infinidade de possibilidades de criação coreográfica,
desde os gestos cotidianos mais simples de abrir e fechar as portas até os
movimentos acrobáticos mais ousados – como o se dependurar de cabeça pra baixo.
Neste sentido, por ser funcional a cenografia assegura espaço para
experimentação dos atuantes e potencializar por meio deles uma série de signos
abertos para a leitura do espectador.
No
entanto, se a funcionalidade da cenografia dá notoriedade e fundamenta o
trabalho de experimentação dos atuantes, o mesmo não se pode dizer da
visualidade. A combinação das cores e dos detalhes pintados no cenário
fragiliza a forte simbologia que deveria estar presente nas portas. Excetuando
os momentos em que pelo uma delas encontra-se aberta contrastando com o fundo
negro, nos demais nos deparamos com uma imagem chapada onde as seis portas
parecem diluir-se num decorativismo estático. Perdemos com isso toda a
simbologia assinalada por Jean Chevalier e Alain Gheerbrant do “local de
passagem entre dois estados, entre dois mundos, entre o conhecido e o
desconhecido” (2007, p. 734). Perde-se ainda, seguindo as passagens dos mesmos
autores, o “valor dinâmico, psicológico; pois não somente indica uma passagem,
mas convida a atravessá-la. É o convite à viagem rumo a um além...” (Idem,
p.735).
Estendo
este problema para os momentos em que ação dramática se desconecta da
cenografia e ganha o amplo espaço de atuação delimitado pelo linóleo. Nestes
momentos identifico os atuantes desenvolvendo uma serie de movimentos
expressivos interessantes e bem executados no âmbito da forma, mas que ao não
dialogar diretamente com o eixo dramático que considero central da montagem
negligencia o âmbito do conteúdo proposta pela encenação – isto é, as portas –
e, neste sentido, poderiam ser realizados em qualquer outro espetáculo de
dança. Deste modo, e nestes momentos específicos ocorre com a cenografia deste
espetáculo, algo diferente da visão de Gianni Ratto: “Continuo defendendo o
conceito do espaço cênico considerado como uma atmosfera dramática que atua no
espetáculo de forma sensorialmente dramática. Ataco violentamente o
decorativismo (...).” (1999, p.19)
Outro
ruído que julgo importante comentar diz respeito as duas ou três entradas na
área de atuação do linóleo realizadas no sentido platéia palco. Os atuantes
surgem da platéia e adentram a área de atuação sem que se estabeleça relação
direta com a cenografia. Isto me fez pensar: estamos todos dentro do mesmo
abrigo sombrio? As portas determinam o lugar de entrada ou de saída? Estou
dentro ou fora do ambiente dramático? Estas questões embora não tenham a
pretensão de determinar qual a perspectiva que o espetáculo deve adotar, visam
contribuir para tornar mais clara a relação palco platéia. Uma
última questão que gostaria de abordar refere-se à interpretação dos atuantes.
Sei dos perigos de tocar no assunto e um deles é não conseguir me fazer
entender com clareza a partir dos termos que utilizo; e outro, a meu ver ainda
mais perigoso, é o uso de um arcabouço conceitual oriundo da linguagem do Teatro
e não da Dança para refletir uma prática que se encontra no âmbito desta
última. Assumo os riscos com o intuito de provocar uma tensão reflexiva entre
essas duas linguagens que no ocidente seguem rumos autônomos.
Assim
como em outros espetáculos de Dança que já tive oportunidade de presenciar,
observo nos atuantes de De dentro um
modo de interpretação que recorre a máscaras faciais expressivas para comunicar
os sentimentos e/ou idéias que estão sendo colocados em cena; dentre elas
invariavelmente são acionadas as máscaras que correspondem aos seguintes
sentimentos: angústia, sofrimento, alegria, ternura, raiva e desespero. Olho
para os atuantes reconheço estas máscaras e sinto uma enorme dificuldade em
acreditar que naquele exato momento da apresentação estes sentimentos estejam
de fato aflorando em cada um deles. Neste momento sinto que lhes falta vida,
tal como reivindicava o grito monstruoso proferido por Artaud:
(...) com este
teatro nós reatamos com a vida em vez de nos separarmos dela. O espectador e
nós mesmos não poderemos nos levar a sério se não tivermos a impressão muito
nítida de que uma parcela de nossa vida profunda está empenhada nesta ação que
tem por quadro o palco. (...) O espectador que vem à nossa casa saberá que ele
vem se oferecer a uma operação verdadeira onde não somente seu espírito mas
seus sentidos e sua carne estão em jogo. Se não estivéssemos persuadidos de
atingi-lo o mais grave possível, nós nos consideraríamos inferiores à nossa
tarefa mais absoluta. Ele deve estar de fato persuadido de que somos capazes de
fazê-lo gritar. (2006, p.34)
Talvez
minha grande frustração ao sair do teatro em diversas ocasiões – não somente em
espetáculos de Dança, mas também de Teatro – encontre-se no fato de saber que
cada atuante detém um poder enorme capaz de promover verdadeiros choques
existenciais no espectador, mas que por algum motivo negligenciam ou não
valorizam este poder. Ficamos então nas bordas da vida: a angústia, o
sofrimento, a alegria, a ternura, a raiva e o desespero são apenas evocados
como parceiros de uma dança que me recuso a dançar, como portas que trago pra
cena, mas que me recuso a atravessá-las.
Em
De dentro temos seis portas para
atravessar. Quem ousará atravessá-las?
Edson Fernando
19.09.2013
CHEVALIER, Jean.
Dicionário de símbolos: (mitos,
sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Trad. Vera da Costa
e Silva. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.
GUINBURG, J.; Silvia Fernandes Telesi; Antonio Mercado Neto (Org.) Antonin Artaud: Linguagem e Vida. São Paulo: Perspectiva, 2006.
RATTO, Gianni. Antitratado de cenografia: variações sobre o mesmo tema. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 1999.