Arthur Ribeiro: Ator e professor de Português; Participante
do minicurso de crítica teatral “O que
pode uma crítica teatral?”
Crítica Publicada originalmente no blog “O
Teatro Como Ele É”
Romeu e Julieta, ao lado
de Hamlet, é a peça de William Shakespeare mais encenada e
adaptada da história. Curiosamente, tornou-se também um ícone do romantismo
popular, e chegou às docerias e sorveterias como a tradicional mistura agridoce
entre queijo e goiabada, de onde a Companhia dos Notáveis Clowns colheu o
título de seu novo espetáculo, Queijo com goiabada. Portanto, a peça,
que conseguiu a proeza de literalmente lotar o teatro Margarida Schivasappa no
domingo chuvoso de sua noite de estreia, pode ser lida desde o título como um
cruzamento entre a literatura trágica erudita e o assalto aos cânones e aos
formalismos do teatro, além da improvisação cômica, que caracterizam a
linguagem do palhaço. Vejo isso refletido principalmente no personagem de
Romeu, em que, com grande apoio da interpretação de Nilton Cézar, o verso
original de Shakespeare é dito de forma a construir uma caracterização que ao
mesmo tempo se leva a sério e ri de sua própria canalhice. Para além de dicções
e interpretações, porém, o que me chama a atenção é a forma como a peça utiliza
a cultura do brega como referência.
Enquanto a tragédia shakespereana
remonta à tensão medieval da rivalidade entre famílias, enredo que serve à
reflexão não só sobre amor, mas sobre destino, tempo, juventude, poder e
diversos outros temas, Queijo com goiabada opta por ressituar
a rusga familiar em termos de uma disputa de aparelhagens, em que uma só toca
tecnobrega e a outra tem no repertório apenas bregas marcantes. Essa trama não
é de todo ficcional, uma vez que, como constata a pesquisa de Antonio Maurício
Dias da Costa (2009), o brega tradicional, com ritmo lento e letras românticas,
e seu derivado, mixado com elementos eletrônicos em uma batida mais acelerada,
apesar de serem ritmos que muitas vezes se misturam no repertório das aparelhagens
e no gosto popular, têm entre si pelo menos duas tensões: uma mais ligada à
produção, em que imputa-se ao tecnobrega, que prima pela virtualidade e pela
rápida circulação, um certo prejuízo à popularização de novos artistas “de
nome” do brega em trabalhos mais “bem produzidos”, como era frequente nas
últimas décadas do século passado; outra, mais vinculada à recepção do gênero,
em que se constata
a especialização das Festas de Tecnobrega, frequentadas basicamente por
adolescentes e jovens, na maioria entre os 14 e os 25 anos e em que se destacam
as mais importantes aparelhagens da cidade. O par oposto desse tipo de festa é
o Baile da Saudade, em que se apresentam aparelhagens e artistas mais antigos,
com o repertório básico de boleros e bregas antigos (bregas dos anos 80,
conhecidos popularmente como flash bregas) e com a frequência
majoritária de pessoas entre a faixa etária dos 20 aos 60 anos. (COSTA, 2009,
p. 52, grifo do autor)
De onde derivam fenômenos como o
surgimento de fãs-clubes e “galeras”, grupos de jovens que se reúnem em torno
da identificação simbólica, da dança e do acompanhamento das aparelhagens por
várias cidades, e que são muito frequentes em festas de tecnobrega e
praticamente ausentes do circuito da saudade.
Nesse contexto, é muito interessante
observar como Queijo com goiabada deixa de lado
essas contradições ao mesmo tempo em que, de certa forma, as ilustra. Embora
desde o prólogo do espetáculo, um duelo de dança apresentado no pátio do
Centur, fique bem marcada a diferença nos hábitos musicais de uma e outra
família, não vemos em seus membros nenhuma caracterização ou construção
dramatúrgica indicadora de diferença de faixa etária, condição social ou
relação simbólica com os ritmos, ausência que se mantém ao longo do espetáculo:
as duas famílias parecem ser tradicionais, com criados subservientes, posições
semelhantes em relação à religião, dentre outros aspectos. Vejo até alguma
contradição nessa caracterização, já que é no núcleo dos Montéquio, família que
só toca brega marcante, em que Romeu e seus amigos formam uma espécie de
“galera”, enquanto Julieta, filha dos Capuleto, fãs de tecnobrega, é
caracterizada como uma jovem um tanto abobada, que parece ser muito mais
dependente dos valores da família.
Outro elemento que vejo a ilustrar
essa análise é o coro, que, em mais de um momento, é central em uma forma
narrativa muito original e divertida, como na cena em que “Quando chegar o
amanhã”, de Leonardo Sullivan, narra a noite de amor de Julieta e Romeu,
enquanto este tenta atabalhoadamente subir pela varanda do quarto da amada.
Aqui, o “apaga essa luz” da letra é uma ótima zona de interposição cômica do
enredo e dos elementos da encenação. Esse mesmo coro, contudo, ao longo de todo
o espetáculo, se nega a construir e intensificar a ideia da rivalidade entre as
famílias por meio das músicas. Nele se misturam todos os personagens, de uma
família e de outra. As canções se limitam a ser um elemento de fundo,
responsável por um tom de identidade regional e pela manutenção da proposta da
companhia, mas fica na plateia uma vontade de ver uma renovação do sentido
delas. E é também no coro que mora o que considero uma ilustração inconsciente
do fenômeno cultural do brega: é visível que a maioria das canções executadas
por ele são flash bregas. A identificação e a
conquista da plateia ocorrem justamente por serem essas as maiores ocupantes do
imaginário popular, enquanto o tecnobrega circula de forma mais restrita e tem
vida mais efêmera nos corações e mentes, sendo talvez por isso um pouco
esquecido pelo coro durante a peça.
A conclusão a que chego é que Queijo
com goiabada é um espetáculo de clown cujos êxitos e inovações são
mais restritos ao próprio processo de palhaçaria do grupo e a diálogos pontuais
com as canções de brega que o embalam do que a um compromisso com uma concepção
a respeito do fenômeno cultural que toma como referência. O que não impede,
obviamente, de nos esbaldarmos nas ironias engraçadíssimas que surgem, como
quando Romeu e um de seus amigos fogem após a morte de um rival dizendo que “Lá
vem a população”. Sinto falta apenas de uma resposta do grupo ao que representa
o brega nisso tudo, o que poderia nos levar a uma reflexão sobre o fenômeno,
importante, a meu ver, no atual cenário de dissolução de fronteiras culturais,
em que artistas do brega são alçados ao estrelato e a representantes da
Amazônia a nível internacional e o show de uma aparelhagem é o maior evento
cultural do ano dentro de uma universidade, como aconteceu no ano passado em
Belém.
Gostaria de encerrar esse texto
falando do que foi, para mim, especial de se ver, para além de qualquer
análise, que foi uma espécie de reverência que todo o evento de domingo
significou à história da arte do palhaço e do circo. O teatro Margarida
Schivasappa, com seu formato italiano em degraus, que lembra a de uma plateia
de circo, lotado, e os aplausos que a plateia rendia às passagens do personagem
do narrador, que me lembrava uma espécie de mestre de cerimônias circense,
foram um toque de saudosismo, um carinho na memória mais importante até do que
os das canções de brega. Foi muito bonito.
REFERÊNCIA
COSTA, A.
M. D. Festa na cidade – o circuito bregueiro de Belém do
Pará. Belém: EDUEPA, 2009.
Ficha técnica:
Realização:
Cia.
dos Notáveis Clowns – SEIVA – Fundação Cultural do Estado do Pará – Governo do
Pará
Apoio cultural:
Parque
Musical – CEB Aldeia – Grupo Experimental de Teatro Aldeato
Elenco:
Adhara
Belo, Ariane Caldas, Artur Neves, Erurico, Hudson dos Passos, Jimi Brito,
Roberta Passinho, Luciano Lira, Nilton Cézar, Neire Lopes, Wallace Horst
Carpintaria:
Rubinaldo
Soares Silva
Adereços:
Rubinaldo
Júnior, Wallace Horst
Visualidade:
Cléber
Cajun
Confecção de figurino:
Olívia
Dias
Operação de iluminação:
Enoque
Paulino
Design gráfico:
Raíssa
Araújo
Assessoria de imprensa:
Leandro
Oliveira
Dramaturgia:
Livre
adaptação da companhia
Direção geral:
João
Guilherme Ribeiro Pinho