domingo, 2 de novembro de 2014

Fala que Eu me escuto

Crítica do espetáculo “Ouça Meu filho”,Por Silvia Luz.

Foi num contexto intimista que a Companhia Avuados de Teatro apresentou ‘Ouça meu filho’, uma dramaturgia experimental desenvolvida a partir de histórias cotidianas compartilhadas pelos espectadores. Enquanto relata uma história, o espectador alimenta a construção imaginária edificada na mente de uma atuante que em seguida operacionaliza as ações, dando vida à narrativa.
No final, a atuante propôs uma conversa informal com os espectadores sobre a vivência coletiva do trabalho desenvolvido. “Cada dia de apresentação é sempre compreendido como espetáculo único, eventual, novo, como novas são as histórias trazidas pelos espectadores a cada dia”, informa a companhia teatral.      
Um ambiente com pouca iluminação, num canto desse espaço havia uma pequena mesa com imagens de santos, velas acesas, um copo com água e uma cadeira ao lado. Na parede a tela de um retroprojetor e no chão, especificamente, num dos cantos alguns objetos. O espectador estava sentado bem próximo da cena, em cadeiras, arquibancadas e no chão mesmo. Durante a encenação o retroprojetor era usado para exibir os vídeos da pesquisa.
A atuante senta na cadeira, toma um pouco d’água e começa a falar. Diz que não consegue abrir o coração, quando o assunto é mais íntimo, a partir daí ela relata vários acontecimentos e de repente, fica no meio do espaço cênico e começa a dizer um poema para a mãe dela, tudo meio corrido, ao piscar dos nossos olhos começa a chorar; corre para a lateral e conversa com uma professora imaginável dizendo que a mãe dela nunca fora na escola nos dias de festas e que ela sempre ensaiava um poema para dizer a mãe, mas não conseguia, pois a emoção a dominava. Neste momento, volta ao centro segurando à mão da professora e diz o poema inteiro sem derramar uma lágrima.
Senhoras e senhores já começou o espetáculo? É a Rose ou o personagem? Fiquei confusa, mas o interessante é que eu sabia exatamente quando era a Rose e quando era o personagem. Nesse momento a arte saiu da caixa preta e foi trazida para a vida. Talvez não exista um nome para esse fazer, mas em alguns momentos lembrou-me os happenings que para o compositor John Cage são “eventos teatrais espontâneos sem trama” e para o poeta e artista plástico Jean Jacques Lebel “é arte plástica, mas sua natureza, não é exclusivamente pictórica, é também cinematográfica, poética, teatral, alucinatória, social-dramática, musical, política, erótica e psicoquímica. Não se dirige unicamente aos olhos do observador, mas a todos os seus sentidos”.
Envolveu além do aspecto de imprevisibilidade, envolveu a participação direta ou indireta dos espectadores presentes. As improvisações nos conduziam as cenas ritmadas pelas ideias do acaso e espontaneidade da atuante em contextos diversos. Acredito ser teatro porque acontece no tempo real, mas recusa algumas convenções artísticas, tipo um texto pronto para ser decorado ou um palco para ser encenado, é aqui, ali ou em qualquer lugar. A apresentação beirou as fronteiras entre arte e vida. Rechaçou as críticas e o fazer teatral somente dentro da caixa preta.
Ouça meu filho! O que é arte? Ela nos diz em cena, a relação da vida dela com a arte, é isso!!! Rompeu barreiras entre a arte e não arte. Seria experimentar a arte como sua razão de ser? Sua razão de ser em cena é o seu dizer-teatral que nos devora inteiro e devolve-nos desvelado de si mesmos.
Vivi este momento como um buscar de mistérios, uma dádiva ofertada. O café que pensei estar na xícara em cima da mesa, foi uma oferenda, mas ele nunca existiu na cena, porém ela me presenteou com este café, senti seu aroma e quentura. Ei, não havia café algum. Seria ela a Matinta Pereira? Ela vem amanhã buscar o café na minha porta? Então vou ter que retribuir o café? Esse café na verdade é a magia do dizer-teatral que a atuante nos dá, mas não nos dá de graça. Tem um o forte interesse de receber o acalanto.
Por que associei à Matinta Pereira? Vi e senti o processo vivido como uma dádiva. Reza a lenda, que devemos retribuir o presente recebido, caso contrário podemos ser amaldiçoados, pois o que a atuante nos deu segundo as variadas lendas da Matinta, possui um vínculo de alma, é algo espiritual. Por isso a obrigação de receber é essencial para o conceito de dádiva de Marcel Mauss (2003), não aceitar é recusar aquele que ofertou, negando a comunhão consigo e com outros, pois é essa comunhão é que nos une. É tomar e dar o café sem ele está ali.


Matinta Perera! Fióóóó! Fióóóó!
Prof.ª Msc. Silvia Luz
02.11.2014