Espetáculo: Peço a
deus que me livre de deus.
Credenciais do autor da crítica: Edson Fernando - Ator e diretor
Teatral, Prof. de Teoria do Teatro da ETDUFPA, atua no COLETIVO DE ANIMADORES
DE CAIXA e como pesquisador no GITA – Grupo de Investigação do Treinamento
Psicofísico do Atuantes.
A marchinha de carnaval
Jardineira, de Orlando Silva, oferece o contraste inicial: uma animada cantoria
entoada pelos atuantes na escuridão da entrada do teatro; ouço as vozes, mas
não vejo os corpos; já sentado na platéia, vislumbro um imenso trono e, por
trás, a torre do que aparenta ser um castelo; as vozes ganham forma na figura
dos atuantes vestidos com túnicas negras, capuzes da mesma cor sobre a cabeça;
a cantoria ganha o centro da área de atuação e só é interrompida pela seminudez
histriônica da jovem que irrompe a cena e anuncia-se vítima de estupro. O
contraste agora se dá entre a alva nudez da vítima com o negro vestuário dos
demais; percorrendo os olhares indiferentes daqueles que parecem ser seus
algozes, resta à jovem exibir seu grito de dor, conseqüência imediata da sua
violação carnal; sua pele grita a dor de uma penetração forçada; seus membros,
num histrionismo desconcertante, desferem golpes cruéis contra si como se
estivesse a ferir o próprio estuprador; mas é a indignação de sua alma que se
instala no espaço por meio de sua vociferação contra uma crueldade ainda maior
do que a já sofrida: a ideologia machista que transforma a vítima em culpada.
A atmosfera trágica
desta primeira cena é dissipada pelo exagero na atuação. Eis o ponto chave
desta montagem: o grotesco, ou como dizem alguns autores o “drama grotesco”. Estas
considerações iniciais referem-se à Peço
a deus que me livre de deus, uma montagem inspirada na obra “Ekhart,
O Cruel”, de Luiz Fernando Emediato. Com direção dos Professores Paulo
Santana e Marluce Oliveira a montagem teatral é resultado da disciplina Prática
de Montagem que envolve os alunos dos Cursos Técnicos em Ator, Cenografia e
Figurino da ETDUFPA.
Engana-se, porém, quem julgar precipitadamente
que o exagero, citado acima, comprometa a narrativa inicial da montagem; pelo
contrário, encontra-se exatamente no histrionismo da atuante Tainá Monteiro os elementos
fundamentais para a compreensão do grotesco – enquanto gênero – para além da
superficialidade da forma. É este aspecto que gostaria de ressaltar em minhas
breves considerações.
Quando o senso comum aciona a idéia
do grotesco, via de regra, faz uma associação com o que provoca o riso pela extravagância
das formas, ou melhor, pela deformação premeditadamente ridícula ocasionada
pelo exagero sensível na aparência. No caso das formas humanas o grotesco ganha
relevos jocosos suscitando quase que de modo imediato a censura – ainda que
muitas vezes velada – e a reprovação de ordem moral ou social. No entanto, se
pensado enquanto gênero – ou subgênero dramático – sua filiação volta-se,
segundo Patrice Pavis (2005, p. 188-9), para sua estreita relação com o
tragicômico e, assim como este último, pode ser considerado um gênero misto,
isto é, àquele onde as fronteiras entre dois modos de operacionalizar o drama –
no caso do tragicômico a tragédia e a comédia – são borradas propositadamente para
se atingir o efeito desejado. Tal efeito é atingido exatamente por uma espécie
de equilíbrio vacilante que alterna caoticamente o risível e o infortúnio
proporcionando um jogo onde os contrários não permitem a hegemonia de nenhum
dos gêneros.
Esta breve digressão é necessária
para refletirmos novamente sobre a cena de abertura da montagem em questão. A
vociferação lancinante de Tainá, sua gesticulação indômita e espasmódica, sua
movimentação aleatória e descompassada contrastam com a reflexão crítica de seu
discurso, uma apologia pela luta feminina contra os ditames do corpo. Meu riso
decorrente da movimentação grotesca da atuante é anulado pela situação trágica
que a mesma contextualiza diante de nossos olhos; mas a seriedade da situação
também se arrefece diante da quase epilética atuação. Considero este um dos
momentos em que a montagem aproxima de modo primoroso, o sublime do grotesco.
Há drama no grotesco e para
se alcançá-lo é necessário atenção a este jogo de contrários que produzem efeitos
surpreendentes na recepção do fenômeno cênico. Penso que a montagem oferece aos
atuantes oportunidade para o exercício deste jogo delicado e complexo onde a
forma, ou a deformidade física dos personagens deve ser pensada com um dos
elementos para o trabalho de composição dos mesmos. Mas ficar somente na forma
é por em risco a riqueza complexa da dramaturgia proposta em cena. Refiro-me a
todos os elementos grotescos da visualidade que a montagem arregimenta e apresenta
de modo bastante eficaz, nas resoluções cênicas propostas: a textura porosa das
deformidades físicas colocadas na composição dos figurinos, assim como o exagero
dos membros – em particular dos órgãos genitais – e dos seus adereços cênicos; a
maquiagem segue primorosamente em consonância com a proposição dos figurinos de
tal modo que é difícil fazer a distinção entre os elementos (maquiagem e
figurino) sem um olhar mais atento e criterioso. Atrevo-me a dizer que o
elemento em desacordo na encenação repousa na sonoplastia, ou melhor, em
algumas músicas que ambientam as cenas, e o exemplo maior dessa minha implicância
é uma canção de Sidney Magal.
Todos estes elementos
da encenação, por mais justos e acertados que estejam, dependem de um
componente fundamental na linguagem do Teatro, isto é, o trabalho criativo do
atuante. É sobre ele – o atuante – que se assenta a responsabilidade pelo jogo
vital no “drama grotesco” descrito acima. E neste aspecto, o trabalho já
começou, mas precisa ser bastante amadurecido a cada apresentação. Observo que
o caminho natural que se estabeleceu na atuação da montagem assenta-se ainda no
grotesco enquanto forma. Assim, observo o desempenho dos diversos papéis perseguindo
uma forma de representação exagerada – em alguns momentos farsesca mesmo – com volume
de voz elevadíssimo e gesticulação histriônica; os papéis cuja deformidade
física é determinada pelo figurino seguem a mesma tendência. Em meio a esta
forma estabelecida de representação a montagem perde em vigor, pois se
estabelece uma linearidade de representação que não favorece o jogo do “drama
grotesco”. Alcanço, na minha recepção, só o grotesco da forma faltando
fundamentalmente o jogo de oposição dado pelo drama. Em várias passagens do texto, percebo a
potência da sátira, a mordacidade das críticas sociais, mas falta estofo
dramático para os atuantes, o elemento que desencadeie a reviravolta da
situação, isto é, a passagem da forma grotesca risível para a situação trágica
do infortúnio.
Uma cena digna de nota
a este respeito ocorre na metade da montagem, protagonizada por duas atuantes: Daiane
Ferreira e Mariléa Aguiar. Identificarei simbolicamente os papéis desempenhados
por elas como a jovem e a velha, respectivamente. Tal denominação
serve não para evidenciar a diferença de idade entre ambas, mas sim para
apontar o lugar da questão central que a cena me provocou.
Vemos no alto da escadaria
uma atuante (a jovem) trajando um belo vestido em estilo corpete; ela desce as
escadas segurando com os braços abertos uma enorme manta vermelha que recobre
sua cabeça; ao fundo, por trás de sua pessoa, vemos imagens flagrantes da
crueldade humana sendo projetadas com recursos audiovisuais; a jovem desce
solenemente arrastando por traz de si a enorme manta vermelha que varre as
escadas e posteriormente o centro da área de atuação; ela não diz nada, somente
deixa escapar um sorrido maléfico em sua face doce – docilidade somente
interrompida pelo efeito da cicatriz proposto na maquiagem; quando se aproxima
do último degrau, próximo a área de atuação, vemos surgir no alto da escadaria
outra atuante (a velha) encoberta por leves tecidos transparentes de tonalidade
azul; com movimentação ritualística ela entoa – numa espécie de latim
onomatopaico artaudiano – melodias sacras; mesmo encoberta pelos tecidos e com
baixa luminosidade é possível perceber, pelo registro de sua voz, o seu
semblante tomado por uma atmosfera tensa, amarga, mas ao mesmo tempo envolvida
pelo desejo de purificação. Instala-se novamente o contraponto do grotesco,
permitindo-me refletir sobre as questões dramáticas abordadas pela montagem,
mas importante ainda, refletir sobre a complexidade da existência humana
traçando uma linha do tempo entre a juventude impetuosa e por vezes cruel do
homem (a jovem) e seu desejo de revisão de vida na maturidade (a velha).
Estas questões me foram
possíveis pelo “drama grotesco” trabalhado nesta cena. Portanto, é necessário
ultrapassar as formas para atingir, por meio delas, seu contraponto filosófico –
o jogo dialético também colocado pelo “drama grotesco”. E isto, deve ser a
chama acesa no processo de trabalho de cada atuante. E se por um lado é
necessário abrir mão da forma grotesca, para ultrapassá-la e deixar fluir seu
discurso subjacente, é certo que o caminho para tal empreendimento começa
exatamente pelo exercício da forma grotesca. Então, o elenco não deve desanimar,
mas sim perceber a excelente oportunidade que esta montagem oferece para vencer
este desafio. Metade do caminho já foi desbravado e o restante só depende do ímpeto
criativo de cada um.
Edson
Fernando
08.12.2013