sábado, 2 de novembro de 2013

Iracema voa. Ester Sá também.



Espetáculo: Iracema Voa.

Credenciais do autor da crítica: Edson Fernando - Ator e diretor Teatral, Prof. de Teoria do Teatro da ETDUFPA, atua no COLETIVO DE ANIMADORES DE CAIXA e como pesquisador no GITA – Grupo de Investigação do Treinamento Psicofísico do Atuantes. 



Antes mesmo do espetáculo propriamente dito começar vemos Ester Sá – única atuante da peça – percorrendo, sem cerimônia, a boca de cena, o palco e mesmo algumas fileiras da platéia. O despojamento da atuante antes de começar a apresentação não é casual: é o primeiro contato com os espectadores, momento onde se estabelece o acordo tácito que situa a encenação no gênero épico, isto é, uma encenação que fundamenta a ação no plano narrativo ao invés de encarná-la e torná-la presente por meio da metamorfose da atuante com as personagens. É neste gênero – o épico – que vemos nascer e crescer as asas do pássaro de Ester Sá sobrevoando, com maestria, a história recente do teatro em Belém do Pará, para nos revelar a trajetória de outro pássaro veterano e mestre: Iracema Oliveira.

Então, quando a apresentação de fato começa vemos a manta gigante que recobre o palco se transformar num vasto céu estrelado, espaço poético onde o pássaro-mestre e o pássaro-discípulo dividem o voo e nos permitem conhecer um pouco de nossa própria história que, por tão gloriosa, nos soa distante e dissonante do presente árido, do céu nublado e trovejante dos tempos atuais que nos desencoraja a voar e nos oferece somente as ruínas do que outrora havia sido o ninho ilustre de tantas outras aves. 

Pode parecer contraditório que o voo de Ester, embora solitário, torne possível plasmar tantos personagens com tão poucos recursos disponíveis. Isso só é possível, é claro, não somente pela escolha acertada da encenação épica, mas pela desenvoltura versátil da atuante que desempenha narrando os acontecimentos e colocando os espectadores sempre em face de algo, numa estrutura dramatúrgica que permite saltos históricos por conter cenas independentes entre si. Mesmo quando a atuante precisa encarnar a protagonista do espetáculo – Iracema Oliveira com seus trejeitos e peculiar modo de proferir palavrões – não perdemos de vista que se trata de uma demonstração didática da personagem e não sua encarnação dramático-catártica.

Neste sentido, Ester nos dá um bom exemplo de “armadura artística transparente”, uma premissa fundamental proposta pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht  que nos é esclarecida por Walter Benjamin do seguinte modo: o atuante deve mostrar uma coisa e depois mostrar-se a si mesmo, ou seja deve sair de seu papel artisticamente. Esta premissa é realizada com bastante naturalidade por Ester e embora sua intenção última difira do intento estético-político do dramaturgo alemão, sua atuação não deixa de ser uma boa referencia para aqueles que procuram exemplos vivos de uma prática complexa como a proposta pelo distanciamento brechtiano.

O segredo disso talvez se encontre no modo como Ester desempenha os diversos papeis: brincando. É esta chave que lhe permite estabelecer relação direta com um dos universos de atuação de sua mestra, Iracema: o Pássaro Junino. Assim, como uma brincante desta manifestação popular tipicamente paraense, a discípula de Iracema está o tempo todo brincando em cena; e na seriedade de sua brincadeira ela nos apresenta os diversos tipos que compõem o enredo dos Pássaros: os nobres – suas atitudes altaneiras e orgulhosas –, os matutos – nas suas atitudes escrachadas e de comicidade burlesca –, o pássaro – a elegância do bailado do bater das asas –, a feiticeira – com sua típica risada de filme americano –, e o caçador, o antagonista da trama. Podemos dizer que todos estes papéis são brincados em cena; a representação ganha vigor na medida em que se assume como brincadeira.

Mas o espetáculo não se esgota no universo dos Pássaros Juninos, pois se assim fosse, negligenciaria uma parte fundamental na trajetória de Iracema: sua participação como estrela da Rádio Marajoara. Visitando este universo Ester nos presenteia com dois momentos marcantes da encenação deste trabalho: um programa de rádio e a interpretação ao vivo de canções entoadas pela própria atuante. No primeiro destes momentos somos convidados por Ester a ouvir um programa de rádio. Trata-se de uma pequena esquete gravada em off  retratando o encontro de duas elegantes e esnobes socialites belenenses. Ester empresta a voz a uma das personagens sendo a outra representada pela voz de Paulí Banhos. A esquete é curta, mas suficiente para nos proporcionar uma boa nostalgia.   

Se no primeiro destes momentos podemos dizer que o elemento “brincadeira” ainda se encontra na raiz da representação, o mesmo não se pode dizer quando Ester interpreta três canções ao vivo, mostrando o lado de interprete de Iracema Oliveira.  Neste momento não há brincadeira e sim a atuante mostrando sua veia de cantora sendo ovacionada pelo público principalmente ao termino da primeira canção – A média luz – que é interpretada em espanhol.

Uma cena de Pássaro Junino ensaiada na hora com algumas pessoas do público trás uma quebra radical na estrutura narrativa da peça. Brincando de ser a diretora Iracema Oliveira, Ester conduz o ensaio apontando dicas de como representar esta manifestação do teatro popular: além do texto manuscrito com as deixas em cor vermelha para facilitar o trabalho do brincante, Ester interrompe as falas do “público-brincante” para solicitar mais ênfase dramática – característica do Pássaro Junino que alguns autores classificam como melodrama.

Mas esta quebra radical – o palco é abandonado e a cena ocorre onde se encontram as pessoas escolhidas para representar os papeis – também serve para nós refletirmos sobre nossa atual conjuntura: os Pássaros Juninos continuam vivos e resistem a uma des-política cultural nefasta das autoridades municipais e estaduais. São inúmeros os grupos que continuam fazendo esta brincadeira popular utilizando dos mesmos recursos de outrora – os textos manuscritos por exemplo. Mas estes grupos se encontram numa zona de invisibilidade que lhes foram impostas pelo descaso e abandono. E o exemplo, trágico por excelência, disso é o estado em que se encontra o Teatro São Cristovão localizado no bairro de São Brás, em Belém, em frente à sede da Secretaria Executiva de Cultura do Estado do Pará - SECULT. De um lado as ruínas do teatro que nos anos 1960 e 1970 abrigou a efervescência cultural da cidade e do outro a ostentação do palacete histórico que abrigou, a partir de 1934, a residência oficial dos governadores do estado. Desse modo, desde a sua inauguração como nova sede da SECULT em 1998, são exatos15 anos de desprezo pelo prédio irmão, ou melhor, pelo primo pobre, o Teatro São Cristovão. É difícil de imaginar que os Srs. secretários de cultura atendam expediente a mais de uma década na frente das ruínas do São Cristovão e não tenham tomado nenhuma providencia para zelar por este patrimônio histórico. A situação se torna mais trágica, indecente e kafkiana quando somos confrontados com o fato de que somente o Sr. Paulo Chaves, atual secretário de cultura, se mantêm no poder há doze anos, se vangloria de sua atuação como arquiteto repetindo a litania de realizador de grandes obras como a Estação das Docas e as edificações no Complexo Feliz Luzitânia. Pergunto ao Sr. secretário: como explicar a miopia que lhe acomete todos os dias e que lhe impede de ver a degradação do patrimônio que se encontra em frente a sua sala de trabalho?

Somente o mais desatento e alienado dos espectadores consegue sair da apresentação de Iracema voa indiferente a estas e outras questões relacionadas às manifestações da cultura popular. Depois de conferir, por meio da narrativa do espetáculo, toda a efervescência dessas manifestações populares em nossa cidade a impressão mais forte que se instala pode ser traduzida pela expressão que vem se consagrando ao longo das últimas décadas: “Belém, terra do já teve”.  

Pra finalizar é importante perceber que este trabalho de Ester Sá nos permite pensar a estreita relação entre pesquisa e criação artística – o espetáculo é resultado de uma bolsa de pesquisa, experimentação e criação artística do IAP - Instituto de Artes do Pará, realizada no ano de 2008. A convite da Escola de Teatro e Dança da UFPA o espetáculo abriu a programação oficial do V Seminário de Pesquisa em Teatro. O evento de pesquisa que chega a sua quinta edição ininterrupta elegeu como eixo temático de suas discussões as manifestações populares. O que a academia pretende ao voltar o seu olhar para os mestres fazedores da cultura popular? A questão se apresenta ainda mais oportuna quando vinculada diretamente ao trabalho de Ester: o que a academia aprende com a pesquisa de Ester? Algumas respostas possíveis: aprende-se que é possível comunicar o resultado de uma pesquisa fugindo dos moldes formais e quadrados da academia de tradição européia; aprende-se que é possível trabalhar numa dimensão didática e artística ao mesmo tempo, sem incorrer nos pedagogismos rasteiros que impedem fluxo natural da arte teatral; que é possível aprender e se divertir artisticamente ao mesmo tempo; enfim, aprende-se que o pesquisador em artes cênicas deve ultrapassar, subverter e rebelar-se contra toda forma de pensamento dicotômico que  envolva teoria e prática.

A pesquisa em artes cênicas – tão recente no Brasil e, mais ainda, em nossa cidade – precisa buscar referencias desta natureza para fugir das armadilhas teoréticas e dos formalismos convencionais da velha academia. É preciso inventar um jeito peculiar para as pesquisas artísticas sem negligenciar o rigor e a disciplina necessários a toda forma de conhecimento. A academia ainda tem muito a aprender sobre os modos de pesquisar artisticamente. A vida e obra de Iracema Oliveira e esta pesquisa de Ester Sá são provas disso. Felizmente elas seguem no céu: Iracema voa, e Ester Sá também.                  

Edson Fernando

02.11.2013