Espetáculo: Iracema
Voa.
Credenciais do autor da crítica: Edson Fernando - Ator e diretor
Teatral, Prof. de Teoria do Teatro da ETDUFPA, atua no COLETIVO DE ANIMADORES
DE CAIXA e como pesquisador no GITA – Grupo de Investigação do Treinamento
Psicofísico do Atuantes.
Antes
mesmo do espetáculo propriamente dito começar vemos Ester Sá – única atuante da
peça – percorrendo, sem cerimônia, a boca de cena, o palco e mesmo algumas
fileiras da platéia. O despojamento da atuante antes de começar a apresentação
não é casual: é o primeiro contato com os espectadores, momento onde se
estabelece o acordo tácito que situa a encenação no gênero épico, isto é, uma
encenação que fundamenta a ação no plano narrativo ao invés de encarná-la e torná-la
presente por meio da metamorfose da atuante com as personagens. É neste gênero
– o épico – que vemos nascer e crescer as asas do pássaro de Ester Sá
sobrevoando, com maestria, a história recente do teatro em Belém do Pará, para
nos revelar a trajetória de outro pássaro veterano e mestre: Iracema Oliveira.
Então,
quando a apresentação de fato começa vemos a manta gigante que recobre o palco
se transformar num vasto céu estrelado, espaço poético onde o pássaro-mestre e
o pássaro-discípulo dividem o voo e nos permitem conhecer um pouco de nossa
própria história que, por tão gloriosa, nos soa distante e dissonante do
presente árido, do céu nublado e trovejante dos tempos atuais que nos
desencoraja a voar e nos oferece somente as ruínas do que outrora havia sido o
ninho ilustre de tantas outras aves.
Pode
parecer contraditório que o voo de Ester, embora solitário, torne possível
plasmar tantos personagens com tão poucos recursos disponíveis. Isso só é
possível, é claro, não somente pela escolha acertada da encenação épica, mas
pela desenvoltura versátil da atuante que desempenha narrando os acontecimentos
e colocando os espectadores sempre em face de algo, numa estrutura dramatúrgica
que permite saltos históricos por conter cenas independentes entre si. Mesmo
quando a atuante precisa encarnar a protagonista do espetáculo – Iracema
Oliveira com seus trejeitos e peculiar modo de proferir palavrões – não
perdemos de vista que se trata de uma demonstração didática da personagem e não
sua encarnação dramático-catártica.
Neste
sentido, Ester nos dá um bom exemplo de “armadura artística transparente”, uma
premissa fundamental proposta pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht que nos é esclarecida por Walter Benjamin do
seguinte modo: o atuante deve mostrar uma coisa e depois mostrar-se a si mesmo,
ou seja deve sair de seu papel artisticamente. Esta premissa é realizada com
bastante naturalidade por Ester e embora sua intenção última difira do intento
estético-político do dramaturgo alemão, sua atuação não deixa de ser uma boa referencia
para aqueles que procuram exemplos vivos de uma prática complexa como a
proposta pelo distanciamento brechtiano.
O
segredo disso talvez se encontre no modo como Ester desempenha os diversos
papeis: brincando. É esta chave que lhe permite estabelecer relação direta com
um dos universos de atuação de sua mestra, Iracema: o Pássaro Junino. Assim,
como uma brincante desta manifestação popular tipicamente paraense, a discípula
de Iracema está o tempo todo brincando em cena; e na seriedade de sua brincadeira
ela nos apresenta os diversos tipos que compõem o enredo dos Pássaros: os
nobres – suas atitudes altaneiras e orgulhosas –, os matutos – nas suas
atitudes escrachadas e de comicidade burlesca –, o pássaro – a elegância do
bailado do bater das asas –, a feiticeira – com sua típica risada de filme
americano –, e o caçador, o antagonista da trama. Podemos dizer que todos estes
papéis são brincados em cena; a representação ganha vigor na medida em que se
assume como brincadeira.
Mas
o espetáculo não se esgota no universo dos Pássaros Juninos, pois se assim
fosse, negligenciaria uma parte fundamental na trajetória de Iracema: sua
participação como estrela da Rádio Marajoara. Visitando este universo Ester nos
presenteia com dois momentos marcantes da encenação deste trabalho: um programa
de rádio e a interpretação ao vivo de canções entoadas pela própria atuante. No
primeiro destes momentos somos convidados por Ester a ouvir um programa de
rádio. Trata-se de uma pequena esquete gravada em off retratando o encontro de
duas elegantes e esnobes socialites belenenses. Ester empresta a voz a uma das
personagens sendo a outra representada pela voz de Paulí Banhos. A esquete é
curta, mas suficiente para nos proporcionar uma boa nostalgia.
Se
no primeiro destes momentos podemos dizer que o elemento “brincadeira” ainda se
encontra na raiz da representação, o mesmo não se pode dizer quando Ester
interpreta três canções ao vivo, mostrando o lado de interprete de Iracema
Oliveira. Neste momento não há
brincadeira e sim a atuante mostrando sua veia de cantora sendo ovacionada pelo
público principalmente ao termino da primeira canção – A média luz – que é
interpretada em espanhol.
Uma
cena de Pássaro Junino ensaiada na hora com algumas pessoas do público trás uma
quebra radical na estrutura narrativa da peça. Brincando de ser a diretora
Iracema Oliveira, Ester conduz o ensaio apontando dicas de como representar
esta manifestação do teatro popular: além do texto manuscrito com as deixas em
cor vermelha para facilitar o trabalho do brincante, Ester interrompe as falas do
“público-brincante” para solicitar mais ênfase dramática – característica do
Pássaro Junino que alguns autores classificam como melodrama.
Mas
esta quebra radical – o palco é abandonado e a cena ocorre onde se encontram as
pessoas escolhidas para representar os papeis – também serve para nós
refletirmos sobre nossa atual conjuntura: os Pássaros Juninos continuam vivos e
resistem a uma des-política cultural nefasta das autoridades municipais e
estaduais. São inúmeros os grupos que continuam fazendo esta brincadeira
popular utilizando dos mesmos recursos de outrora – os textos manuscritos por
exemplo. Mas estes grupos se encontram numa zona de invisibilidade que lhes
foram impostas pelo descaso e abandono. E o exemplo, trágico por excelência, disso
é o estado em que se encontra o Teatro São Cristovão localizado no bairro de
São Brás, em Belém, em frente à sede da Secretaria Executiva de Cultura do
Estado do Pará - SECULT. De um lado as ruínas do teatro que nos anos 1960 e
1970 abrigou a efervescência cultural da cidade e do outro a ostentação do palacete
histórico que abrigou, a partir de 1934, a residência oficial dos governadores
do estado. Desse modo, desde a sua inauguração como nova sede da SECULT em 1998,
são exatos15 anos de desprezo pelo prédio irmão, ou melhor, pelo primo pobre, o
Teatro São Cristovão. É difícil de imaginar que os Srs. secretários de cultura
atendam expediente a mais de uma década na frente das ruínas do São Cristovão e
não tenham tomado nenhuma providencia para zelar por este patrimônio histórico.
A situação se torna mais trágica, indecente e kafkiana quando somos confrontados
com o fato de que somente o Sr. Paulo Chaves, atual secretário de cultura, se
mantêm no poder há doze anos, se vangloria de sua atuação como arquiteto
repetindo a litania de realizador de grandes obras como a Estação das Docas e as
edificações no Complexo Feliz Luzitânia. Pergunto ao Sr. secretário: como
explicar a miopia que lhe acomete todos os dias e que lhe impede de ver a
degradação do patrimônio que se encontra em frente a sua sala de trabalho?
Somente
o mais desatento e alienado dos espectadores consegue sair da apresentação de Iracema voa indiferente a estas e
outras questões relacionadas às manifestações da cultura popular. Depois de
conferir, por meio da narrativa do espetáculo, toda a efervescência dessas
manifestações populares em nossa cidade a impressão mais forte que se instala
pode ser traduzida pela expressão que vem se consagrando ao longo das últimas
décadas: “Belém, terra do já teve”.
Pra
finalizar é importante perceber que este trabalho de Ester Sá nos permite
pensar a estreita relação entre pesquisa e criação artística – o espetáculo é
resultado de uma bolsa de pesquisa, experimentação e criação artística do IAP -
Instituto de Artes do Pará, realizada no ano de 2008. A convite da Escola de
Teatro e Dança da UFPA o espetáculo abriu a programação oficial do V Seminário
de Pesquisa em Teatro. O evento de pesquisa que chega a sua quinta edição
ininterrupta elegeu como eixo temático de suas discussões as manifestações
populares. O que a academia pretende ao voltar o seu olhar para os mestres
fazedores da cultura popular? A questão se apresenta ainda mais oportuna quando
vinculada diretamente ao trabalho de Ester: o que a academia aprende com a
pesquisa de Ester? Algumas respostas possíveis: aprende-se que é possível
comunicar o resultado de uma pesquisa fugindo dos moldes formais e quadrados da
academia de tradição européia; aprende-se que é possível trabalhar numa
dimensão didática e artística ao mesmo tempo, sem incorrer nos pedagogismos
rasteiros que impedem fluxo natural da arte teatral; que é possível aprender e
se divertir artisticamente ao mesmo tempo; enfim, aprende-se que o pesquisador
em artes cênicas deve ultrapassar, subverter e rebelar-se contra toda forma de
pensamento dicotômico que envolva teoria
e prática.
A
pesquisa em artes cênicas – tão recente no Brasil e, mais ainda, em nossa
cidade – precisa buscar referencias desta natureza para fugir das armadilhas teoréticas
e dos formalismos convencionais da velha academia. É preciso inventar um jeito
peculiar para as pesquisas artísticas sem negligenciar o rigor e a disciplina
necessários a toda forma de conhecimento. A academia ainda tem muito a aprender
sobre os modos de pesquisar artisticamente. A vida e obra de Iracema Oliveira e
esta pesquisa de Ester Sá são provas disso. Felizmente elas seguem no céu:
Iracema voa, e Ester Sá também.
Edson Fernando
02.11.2013