domingo, 8 de dezembro de 2013

Ekhart e as artimanhas do grotesco.

Espetáculo: Peço a deus que me livre de deus.
Credenciais do autor da crítica: Edson Fernando - Ator e diretor Teatral, Prof. de Teoria do Teatro da ETDUFPA, atua no COLETIVO DE ANIMADORES DE CAIXA e como pesquisador no GITA – Grupo de Investigação do Treinamento Psicofísico do Atuantes. 

A marchinha de carnaval Jardineira, de Orlando Silva, oferece o contraste inicial: uma animada cantoria entoada pelos atuantes na escuridão da entrada do teatro; ouço as vozes, mas não vejo os corpos; já sentado na platéia, vislumbro um imenso trono e, por trás, a torre do que aparenta ser um castelo; as vozes ganham forma na figura dos atuantes vestidos com túnicas negras, capuzes da mesma cor sobre a cabeça; a cantoria ganha o centro da área de atuação e só é interrompida pela seminudez histriônica da jovem que irrompe a cena e anuncia-se vítima de estupro. O contraste agora se dá entre a alva nudez da vítima com o negro vestuário dos demais; percorrendo os olhares indiferentes daqueles que parecem ser seus algozes, resta à jovem exibir seu grito de dor, conseqüência imediata da sua violação carnal; sua pele grita a dor de uma penetração forçada; seus membros, num histrionismo desconcertante, desferem golpes cruéis contra si como se estivesse a ferir o próprio estuprador; mas é a indignação de sua alma que se instala no espaço por meio de sua vociferação contra uma crueldade ainda maior do que a já sofrida: a ideologia machista que transforma a vítima em culpada.            
A atmosfera trágica desta primeira cena é dissipada pelo exagero na atuação. Eis o ponto chave desta montagem: o grotesco, ou como dizem alguns autores o “drama grotesco”. Estas considerações iniciais referem-se à Peço a deus que me livre de deus, uma montagem inspirada na obra “Ekhart, O Cruel”, de Luiz Fernando Emediato. Com direção dos Professores Paulo Santana e Marluce Oliveira a montagem teatral é resultado da disciplina  Prática de Montagem que envolve os alunos dos Cursos Técnicos em Ator, Cenografia e Figurino da ETDUFPA.
Engana-se, porém, quem julgar precipitadamente que o exagero, citado acima, comprometa a narrativa inicial da montagem; pelo contrário, encontra-se exatamente no histrionismo da atuante Tainá Monteiro os elementos fundamentais para a compreensão do grotesco – enquanto gênero – para além da superficialidade da forma. É este aspecto que gostaria de ressaltar em minhas breves considerações.
Quando o senso comum aciona a idéia do grotesco, via de regra, faz uma associação com o que provoca o riso pela extravagância das formas, ou melhor, pela deformação premeditadamente ridícula ocasionada pelo exagero sensível na aparência. No caso das formas humanas o grotesco ganha relevos jocosos suscitando quase que de modo imediato a censura – ainda que muitas vezes velada – e a reprovação de ordem moral ou social. No entanto, se pensado enquanto gênero – ou subgênero dramático – sua filiação volta-se, segundo Patrice Pavis (2005, p. 188-9), para sua estreita relação com o tragicômico e, assim como este último, pode ser considerado um gênero misto, isto é, àquele onde as fronteiras entre dois modos de operacionalizar o drama – no caso do tragicômico a tragédia e a comédia – são borradas propositadamente para se atingir o efeito desejado. Tal efeito é atingido exatamente por uma espécie de equilíbrio vacilante que alterna caoticamente o risível e o infortúnio proporcionando um jogo onde os contrários não permitem a hegemonia de nenhum dos gêneros.
Esta breve digressão é necessária para refletirmos novamente sobre a cena de abertura da montagem em questão. A vociferação lancinante de Tainá, sua gesticulação indômita e espasmódica, sua movimentação aleatória e descompassada contrastam com a reflexão crítica de seu discurso, uma apologia pela luta feminina contra os ditames do corpo. Meu riso decorrente da movimentação grotesca da atuante é anulado pela situação trágica que a mesma contextualiza diante de nossos olhos; mas a seriedade da situação também se arrefece diante da quase epilética atuação. Considero este um dos momentos em que a montagem aproxima de modo primoroso, o sublime do grotesco.                                   
Há drama no grotesco e para se alcançá-lo é necessário atenção a este jogo de contrários que produzem efeitos surpreendentes na recepção do fenômeno cênico. Penso que a montagem oferece aos atuantes oportunidade para o exercício deste jogo delicado e complexo onde a forma, ou a deformidade física dos personagens deve ser pensada com um dos elementos para o trabalho de composição dos mesmos. Mas ficar somente na forma é por em risco a riqueza complexa da dramaturgia proposta em cena. Refiro-me a todos os elementos grotescos da visualidade que a montagem arregimenta e apresenta de modo bastante eficaz, nas resoluções cênicas propostas: a textura porosa das deformidades físicas colocadas na composição dos figurinos, assim como o exagero dos membros – em particular dos órgãos genitais – e dos seus adereços cênicos; a maquiagem segue primorosamente em consonância com a proposição dos figurinos de tal modo que é difícil fazer a distinção entre os elementos (maquiagem e figurino) sem um olhar mais atento e criterioso. Atrevo-me a dizer que o elemento em desacordo na encenação repousa na sonoplastia, ou melhor, em algumas músicas que ambientam as cenas, e o exemplo maior dessa minha implicância é uma canção de Sidney Magal.
Todos estes elementos da encenação, por mais justos e acertados que estejam, dependem de um componente fundamental na linguagem do Teatro, isto é, o trabalho criativo do atuante. É sobre ele – o atuante – que se assenta a responsabilidade pelo jogo vital no “drama grotesco” descrito acima. E neste aspecto, o trabalho já começou, mas precisa ser bastante amadurecido a cada apresentação. Observo que o caminho natural que se estabeleceu na atuação da montagem assenta-se ainda no grotesco enquanto forma. Assim, observo o desempenho dos diversos papéis perseguindo uma forma de representação exagerada – em alguns momentos farsesca mesmo – com volume de voz elevadíssimo e gesticulação histriônica; os papéis cuja deformidade física é determinada pelo figurino seguem a mesma tendência. Em meio a esta forma estabelecida de representação a montagem perde em vigor, pois se estabelece uma linearidade de representação que não favorece o jogo do “drama grotesco”. Alcanço, na minha recepção, só o grotesco da forma faltando fundamentalmente o jogo de oposição dado pelo drama.  Em várias passagens do texto, percebo a potência da sátira, a mordacidade das críticas sociais, mas falta estofo dramático para os atuantes, o elemento que desencadeie a reviravolta da situação, isto é, a passagem da forma grotesca risível para a situação trágica do infortúnio.
Uma cena digna de nota a este respeito ocorre na metade da montagem, protagonizada por duas atuantes: Daiane Ferreira e Mariléa Aguiar. Identificarei simbolicamente os papéis desempenhados por elas como a jovem e a velha, respectivamente. Tal denominação serve não para evidenciar a diferença de idade entre ambas, mas sim para apontar o lugar da questão central que a cena me provocou.  
Vemos no alto da escadaria uma atuante (a jovem) trajando um belo vestido em estilo corpete; ela desce as escadas segurando com os braços abertos uma enorme manta vermelha que recobre sua cabeça; ao fundo, por trás de sua pessoa, vemos imagens flagrantes da crueldade humana sendo projetadas com recursos audiovisuais; a jovem desce solenemente arrastando por traz de si a enorme manta vermelha que varre as escadas e posteriormente o centro da área de atuação; ela não diz nada, somente deixa escapar um sorrido maléfico em sua face doce – docilidade somente interrompida pelo efeito da cicatriz proposto na maquiagem; quando se aproxima do último degrau, próximo a área de atuação, vemos surgir no alto da escadaria outra atuante (a velha) encoberta por leves tecidos transparentes de tonalidade azul; com movimentação ritualística ela entoa – numa espécie de latim onomatopaico artaudiano – melodias sacras; mesmo encoberta pelos tecidos e com baixa luminosidade é possível perceber, pelo registro de sua voz, o seu semblante tomado por uma atmosfera tensa, amarga, mas ao mesmo tempo envolvida pelo desejo de purificação. Instala-se novamente o contraponto do grotesco, permitindo-me refletir sobre as questões dramáticas abordadas pela montagem, mas importante ainda, refletir sobre a complexidade da existência humana traçando uma linha do tempo entre a juventude impetuosa e por vezes cruel do homem (a jovem) e seu desejo de revisão de vida na maturidade (a velha).
Estas questões me foram possíveis pelo “drama grotesco” trabalhado nesta cena. Portanto, é necessário ultrapassar as formas para atingir, por meio delas, seu contraponto filosófico – o jogo dialético também colocado pelo “drama grotesco”. E isto, deve ser a chama acesa no processo de trabalho de cada atuante. E se por um lado é necessário abrir mão da forma grotesca, para ultrapassá-la e deixar fluir seu discurso subjacente, é certo que o caminho para tal empreendimento começa exatamente pelo exercício da forma grotesca. Então, o elenco não deve desanimar, mas sim perceber a excelente oportunidade que esta montagem oferece para vencer este desafio. Metade do caminho já foi desbravado e o restante só depende do ímpeto criativo de cada um.   

Edson Fernando
08.12.2013

sábado, 2 de novembro de 2013

Iracema voa. Ester Sá também.



Espetáculo: Iracema Voa.

Credenciais do autor da crítica: Edson Fernando - Ator e diretor Teatral, Prof. de Teoria do Teatro da ETDUFPA, atua no COLETIVO DE ANIMADORES DE CAIXA e como pesquisador no GITA – Grupo de Investigação do Treinamento Psicofísico do Atuantes. 



Antes mesmo do espetáculo propriamente dito começar vemos Ester Sá – única atuante da peça – percorrendo, sem cerimônia, a boca de cena, o palco e mesmo algumas fileiras da platéia. O despojamento da atuante antes de começar a apresentação não é casual: é o primeiro contato com os espectadores, momento onde se estabelece o acordo tácito que situa a encenação no gênero épico, isto é, uma encenação que fundamenta a ação no plano narrativo ao invés de encarná-la e torná-la presente por meio da metamorfose da atuante com as personagens. É neste gênero – o épico – que vemos nascer e crescer as asas do pássaro de Ester Sá sobrevoando, com maestria, a história recente do teatro em Belém do Pará, para nos revelar a trajetória de outro pássaro veterano e mestre: Iracema Oliveira.

Então, quando a apresentação de fato começa vemos a manta gigante que recobre o palco se transformar num vasto céu estrelado, espaço poético onde o pássaro-mestre e o pássaro-discípulo dividem o voo e nos permitem conhecer um pouco de nossa própria história que, por tão gloriosa, nos soa distante e dissonante do presente árido, do céu nublado e trovejante dos tempos atuais que nos desencoraja a voar e nos oferece somente as ruínas do que outrora havia sido o ninho ilustre de tantas outras aves. 

Pode parecer contraditório que o voo de Ester, embora solitário, torne possível plasmar tantos personagens com tão poucos recursos disponíveis. Isso só é possível, é claro, não somente pela escolha acertada da encenação épica, mas pela desenvoltura versátil da atuante que desempenha narrando os acontecimentos e colocando os espectadores sempre em face de algo, numa estrutura dramatúrgica que permite saltos históricos por conter cenas independentes entre si. Mesmo quando a atuante precisa encarnar a protagonista do espetáculo – Iracema Oliveira com seus trejeitos e peculiar modo de proferir palavrões – não perdemos de vista que se trata de uma demonstração didática da personagem e não sua encarnação dramático-catártica.

Neste sentido, Ester nos dá um bom exemplo de “armadura artística transparente”, uma premissa fundamental proposta pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht  que nos é esclarecida por Walter Benjamin do seguinte modo: o atuante deve mostrar uma coisa e depois mostrar-se a si mesmo, ou seja deve sair de seu papel artisticamente. Esta premissa é realizada com bastante naturalidade por Ester e embora sua intenção última difira do intento estético-político do dramaturgo alemão, sua atuação não deixa de ser uma boa referencia para aqueles que procuram exemplos vivos de uma prática complexa como a proposta pelo distanciamento brechtiano.

O segredo disso talvez se encontre no modo como Ester desempenha os diversos papeis: brincando. É esta chave que lhe permite estabelecer relação direta com um dos universos de atuação de sua mestra, Iracema: o Pássaro Junino. Assim, como uma brincante desta manifestação popular tipicamente paraense, a discípula de Iracema está o tempo todo brincando em cena; e na seriedade de sua brincadeira ela nos apresenta os diversos tipos que compõem o enredo dos Pássaros: os nobres – suas atitudes altaneiras e orgulhosas –, os matutos – nas suas atitudes escrachadas e de comicidade burlesca –, o pássaro – a elegância do bailado do bater das asas –, a feiticeira – com sua típica risada de filme americano –, e o caçador, o antagonista da trama. Podemos dizer que todos estes papéis são brincados em cena; a representação ganha vigor na medida em que se assume como brincadeira.

Mas o espetáculo não se esgota no universo dos Pássaros Juninos, pois se assim fosse, negligenciaria uma parte fundamental na trajetória de Iracema: sua participação como estrela da Rádio Marajoara. Visitando este universo Ester nos presenteia com dois momentos marcantes da encenação deste trabalho: um programa de rádio e a interpretação ao vivo de canções entoadas pela própria atuante. No primeiro destes momentos somos convidados por Ester a ouvir um programa de rádio. Trata-se de uma pequena esquete gravada em off  retratando o encontro de duas elegantes e esnobes socialites belenenses. Ester empresta a voz a uma das personagens sendo a outra representada pela voz de Paulí Banhos. A esquete é curta, mas suficiente para nos proporcionar uma boa nostalgia.   

Se no primeiro destes momentos podemos dizer que o elemento “brincadeira” ainda se encontra na raiz da representação, o mesmo não se pode dizer quando Ester interpreta três canções ao vivo, mostrando o lado de interprete de Iracema Oliveira.  Neste momento não há brincadeira e sim a atuante mostrando sua veia de cantora sendo ovacionada pelo público principalmente ao termino da primeira canção – A média luz – que é interpretada em espanhol.

Uma cena de Pássaro Junino ensaiada na hora com algumas pessoas do público trás uma quebra radical na estrutura narrativa da peça. Brincando de ser a diretora Iracema Oliveira, Ester conduz o ensaio apontando dicas de como representar esta manifestação do teatro popular: além do texto manuscrito com as deixas em cor vermelha para facilitar o trabalho do brincante, Ester interrompe as falas do “público-brincante” para solicitar mais ênfase dramática – característica do Pássaro Junino que alguns autores classificam como melodrama.

Mas esta quebra radical – o palco é abandonado e a cena ocorre onde se encontram as pessoas escolhidas para representar os papeis – também serve para nós refletirmos sobre nossa atual conjuntura: os Pássaros Juninos continuam vivos e resistem a uma des-política cultural nefasta das autoridades municipais e estaduais. São inúmeros os grupos que continuam fazendo esta brincadeira popular utilizando dos mesmos recursos de outrora – os textos manuscritos por exemplo. Mas estes grupos se encontram numa zona de invisibilidade que lhes foram impostas pelo descaso e abandono. E o exemplo, trágico por excelência, disso é o estado em que se encontra o Teatro São Cristovão localizado no bairro de São Brás, em Belém, em frente à sede da Secretaria Executiva de Cultura do Estado do Pará - SECULT. De um lado as ruínas do teatro que nos anos 1960 e 1970 abrigou a efervescência cultural da cidade e do outro a ostentação do palacete histórico que abrigou, a partir de 1934, a residência oficial dos governadores do estado. Desse modo, desde a sua inauguração como nova sede da SECULT em 1998, são exatos15 anos de desprezo pelo prédio irmão, ou melhor, pelo primo pobre, o Teatro São Cristovão. É difícil de imaginar que os Srs. secretários de cultura atendam expediente a mais de uma década na frente das ruínas do São Cristovão e não tenham tomado nenhuma providencia para zelar por este patrimônio histórico. A situação se torna mais trágica, indecente e kafkiana quando somos confrontados com o fato de que somente o Sr. Paulo Chaves, atual secretário de cultura, se mantêm no poder há doze anos, se vangloria de sua atuação como arquiteto repetindo a litania de realizador de grandes obras como a Estação das Docas e as edificações no Complexo Feliz Luzitânia. Pergunto ao Sr. secretário: como explicar a miopia que lhe acomete todos os dias e que lhe impede de ver a degradação do patrimônio que se encontra em frente a sua sala de trabalho?

Somente o mais desatento e alienado dos espectadores consegue sair da apresentação de Iracema voa indiferente a estas e outras questões relacionadas às manifestações da cultura popular. Depois de conferir, por meio da narrativa do espetáculo, toda a efervescência dessas manifestações populares em nossa cidade a impressão mais forte que se instala pode ser traduzida pela expressão que vem se consagrando ao longo das últimas décadas: “Belém, terra do já teve”.  

Pra finalizar é importante perceber que este trabalho de Ester Sá nos permite pensar a estreita relação entre pesquisa e criação artística – o espetáculo é resultado de uma bolsa de pesquisa, experimentação e criação artística do IAP - Instituto de Artes do Pará, realizada no ano de 2008. A convite da Escola de Teatro e Dança da UFPA o espetáculo abriu a programação oficial do V Seminário de Pesquisa em Teatro. O evento de pesquisa que chega a sua quinta edição ininterrupta elegeu como eixo temático de suas discussões as manifestações populares. O que a academia pretende ao voltar o seu olhar para os mestres fazedores da cultura popular? A questão se apresenta ainda mais oportuna quando vinculada diretamente ao trabalho de Ester: o que a academia aprende com a pesquisa de Ester? Algumas respostas possíveis: aprende-se que é possível comunicar o resultado de uma pesquisa fugindo dos moldes formais e quadrados da academia de tradição européia; aprende-se que é possível trabalhar numa dimensão didática e artística ao mesmo tempo, sem incorrer nos pedagogismos rasteiros que impedem fluxo natural da arte teatral; que é possível aprender e se divertir artisticamente ao mesmo tempo; enfim, aprende-se que o pesquisador em artes cênicas deve ultrapassar, subverter e rebelar-se contra toda forma de pensamento dicotômico que  envolva teoria e prática.

A pesquisa em artes cênicas – tão recente no Brasil e, mais ainda, em nossa cidade – precisa buscar referencias desta natureza para fugir das armadilhas teoréticas e dos formalismos convencionais da velha academia. É preciso inventar um jeito peculiar para as pesquisas artísticas sem negligenciar o rigor e a disciplina necessários a toda forma de conhecimento. A academia ainda tem muito a aprender sobre os modos de pesquisar artisticamente. A vida e obra de Iracema Oliveira e esta pesquisa de Ester Sá são provas disso. Felizmente elas seguem no céu: Iracema voa, e Ester Sá também.                  

Edson Fernando

02.11.2013

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Portas?


Espetáculo: De dentro.

Montagem: Cia Experimental de Dança Waldete Brito.



Credenciais do autor da crítica: Edson Fernando - Ator e diretor Teatral, Prof. de Teoria do Teatro da ETDUFPA, atua no COLETIVO DE ANIMADORES DE CAIXA e como pesquisador no GITA – Grupo de Investigação do Treinamento Psicofísico do Atuantes. 



Seis mulheres. Seis portas. Amores, dores, laços desfeitos, encontros interrompidos, tensos triângulos, dança com a solidão. A urgência da travessia se impõe desde cedo; as portas se abrem para revelar o estranho abrigo que acolhe as damas – por ora – solitárias: o vazio negro, a desoladora solitude de quem perdeu o par no baile trágico das paixões.

– Deixo pra trás a dor da saudade! Parto rumo ao desconhecido na certeza de levar comigo somente a metade que me liberta de ti.

É o que parecem gritar as seis damas por meio da poesia de seus gestos e movimentos. Não demora muito para conhecermos os demais habitantes deste abrigo sombrio: dois cavalheiros e outras duas damas que se juntam as seis primeiras para dançar “o lugar entre” estabelecido pelas seis portas.

A proposta de experimentação cênica delineada, de modo breve, acima é da Cia Experimental de Dança Waldete Brito. Trata-se do espetáculo intitulado De dentro, uma das primeiras montagens do repertório da Cia que completa em 2013 quinze anos de pesquisa-artística ininterrupta. Dirigida pela professora Waldete Brito a Cia se notabiliza ao longo destes anos pelos processos de criação em Dança Contemporânea desenvolvidos de modo colaborativo com os atuantes, tendo como principal procedimento criativo a técnica da improvisação.

Em De dentro a vitalidade da encenação assenta-se exatamente no jogo estabelecido com, e a partir da cenografia. As seis portas que também se transformam em janelas e pequenas passagens inferiores oferecem aos atuantes uma infinidade de possibilidades de criação coreográfica, desde os gestos cotidianos mais simples de abrir e fechar as portas até os movimentos acrobáticos mais ousados – como o se dependurar de cabeça pra baixo. Neste sentido, por ser funcional a cenografia assegura espaço para experimentação dos atuantes e potencializar por meio deles uma série de signos abertos para a leitura do espectador.

No entanto, se a funcionalidade da cenografia dá notoriedade e fundamenta o trabalho de experimentação dos atuantes, o mesmo não se pode dizer da visualidade. A combinação das cores e dos detalhes pintados no cenário fragiliza a forte simbologia que deveria estar presente nas portas. Excetuando os momentos em que pelo uma delas encontra-se aberta contrastando com o fundo negro, nos demais nos deparamos com uma imagem chapada onde as seis portas parecem diluir-se num decorativismo estático. Perdemos com isso toda a simbologia assinalada por Jean Chevalier e Alain Gheerbrant do “local de passagem entre dois estados, entre dois mundos, entre o conhecido e o desconhecido” (2007, p. 734). Perde-se ainda, seguindo as passagens dos mesmos autores, o “valor dinâmico, psicológico; pois não somente indica uma passagem, mas convida a atravessá-la. É o convite à viagem rumo a um além...” (Idem, p.735).

Estendo este problema para os momentos em que ação dramática se desconecta da cenografia e ganha o amplo espaço de atuação delimitado pelo linóleo. Nestes momentos identifico os atuantes desenvolvendo uma serie de movimentos expressivos interessantes e bem executados no âmbito da forma, mas que ao não dialogar diretamente com o eixo dramático que considero central da montagem negligencia o âmbito do conteúdo proposta pela encenação – isto é, as portas – e, neste sentido, poderiam ser realizados em qualquer outro espetáculo de dança. Deste modo, e nestes momentos específicos ocorre com a cenografia deste espetáculo, algo diferente da visão de Gianni Ratto: “Continuo defendendo o conceito do espaço cênico considerado como uma atmosfera dramática que atua no espetáculo de forma sensorialmente dramática. Ataco violentamente o decorativismo (...).” (1999, p.19)

Outro ruído que julgo importante comentar diz respeito as duas ou três entradas na área de atuação do linóleo realizadas no sentido platéia palco. Os atuantes surgem da platéia e adentram a área de atuação sem que se estabeleça relação direta com a cenografia. Isto me fez pensar: estamos todos dentro do mesmo abrigo sombrio? As portas determinam o lugar de entrada ou de saída? Estou dentro ou fora do ambiente dramático? Estas questões embora não tenham a pretensão de determinar qual a perspectiva que o espetáculo deve adotar, visam contribuir para tornar mais clara a relação palco platéia.                                   Uma última questão que gostaria de abordar refere-se à interpretação dos atuantes. Sei dos perigos de tocar no assunto e um deles é não conseguir me fazer entender com clareza a partir dos termos que utilizo; e outro, a meu ver ainda mais perigoso, é o uso de um arcabouço conceitual oriundo da linguagem do Teatro e não da Dança para refletir uma prática que se encontra no âmbito desta última. Assumo os riscos com o intuito de provocar uma tensão reflexiva entre essas duas linguagens que no ocidente seguem rumos autônomos.

Assim como em outros espetáculos de Dança que já tive oportunidade de presenciar, observo nos atuantes de De dentro um modo de interpretação que recorre a máscaras faciais expressivas para comunicar os sentimentos e/ou idéias que estão sendo colocados em cena; dentre elas invariavelmente são acionadas as máscaras que correspondem aos seguintes sentimentos: angústia, sofrimento, alegria, ternura, raiva e desespero. Olho para os atuantes reconheço estas máscaras e sinto uma enorme dificuldade em acreditar que naquele exato momento da apresentação estes sentimentos estejam de fato aflorando em cada um deles. Neste momento sinto que lhes falta vida, tal como reivindicava o grito monstruoso proferido por Artaud:

(...) com este teatro nós reatamos com a vida em vez de nos separarmos dela. O espectador e nós mesmos não poderemos nos levar a sério se não tivermos a impressão muito nítida de que uma parcela de nossa vida profunda está empenhada nesta ação que tem por quadro o palco. (...) O espectador que vem à nossa casa saberá que ele vem se oferecer a uma operação verdadeira onde não somente seu espírito mas seus sentidos e sua carne estão em jogo. Se não estivéssemos persuadidos de atingi-lo o mais grave possível, nós nos consideraríamos inferiores à nossa tarefa mais absoluta. Ele deve estar de fato persuadido de que somos capazes de fazê-lo gritar. (2006, p.34)                

Talvez minha grande frustração ao sair do teatro em diversas ocasiões – não somente em espetáculos de Dança, mas também de Teatro – encontre-se no fato de saber que cada atuante detém um poder enorme capaz de promover verdadeiros choques existenciais no espectador, mas que por algum motivo negligenciam ou não valorizam este poder. Ficamos então nas bordas da vida: a angústia, o sofrimento, a alegria, a ternura, a raiva e o desespero são apenas evocados como parceiros de uma dança que me recuso a dançar, como portas que trago pra cena, mas que me recuso a atravessá-las.

Em De dentro temos seis portas para atravessar. Quem ousará atravessá-las?

Edson Fernando

19.09.2013       



CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Trad. Vera da Costa e Silva. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.


GUINBURG, J.; Silvia Fernandes Telesi; Antonio Mercado Neto (Org.) Antonin Artaud: Linguagem e Vida. São Paulo: Perspectiva, 2006.



RATTO, Gianni. Antitratado de cenografia: variações sobre o mesmo tema. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 1999.