terça-feira, 30 de junho de 2015

Pelos olhos de quem?

Edson Fernando: Ator e Diretor Teatral; Professor de Teoria do Teatro da Escola de Teatro e Dança da UFPA. 
Não há duvidas que a iniciativa de reunir um elenco com atores e atrizes com deficiências diversas – baixa visão, surdo, cego, síndrome de down e autista – mostra-se não somente louvável pela esforço de trabalhar poeticamente com estas diferenças, mas também por colocar em pauta, em nossa cidade, a discussão da inclusão. O tema ainda é bastante delicado e cercado de tabus que precisam ser desconstruídos para que se avance de fato na construção de uma sociedade inclusiva. Sabemos que a cidade de Belém está muito distante das implementações necessárias para que isso aconteça e, portanto, todos os esforços no sentido de avançar nas discussões merecem atenção.
O projeto Cena Especial – Teatro Inclusivo, coordenado por Carlos Correia Santos arrogou este desafio e iniciou o debate público sobre a questão com o experimento cênico chamado Pelos olhos dela, montagem cênica que teve curta temporada de apresentações no auditório da FIBRA – Faculdade Integrada Brasil Amazônia. Embora não tenha participado efetiva e completamente da experiência sensorial proposta pelo grupo – somente 40 pessoas participam diretamente do espetáculo dividindo o palco com os atuantes; os primeiros 40 recebem uma venda e acompanham toda a apresentação abstraindo o sentido da visão; os demais são convidados a acompanhar a apresentação de olhos fechados e sentados na platéia do auditório; quando cheguei já haviam esgotados os 40 lugares para participar no palco – me reservo o direito e o dever de repercutir algumas questões que podem contribuir com o tema da inclusão e, consequentemente, com o trabalho do projeto.  
O primeiro aspecto que me provoca inquietação é: por onde devo construir meu discurso crítico sobre o espetáculo, dado sua natureza e atuantes diferenciados? A meu ver, isso me coloca diretamente de frente com um tabu: não se deve ser tão rigoroso em se tratando de artistas-deficientes, posto que a vida já lhes imputou dificuldades naturais a partir de suas deficiências. Avalia-se, portanto, por este tabu, as atividades dos deficientes como inferiores sempre que comparadas as demais pessoas sem deficiência. Seria esse o modo justo de lidar com os deficientes? Não é o que se propõe com a peça escrita e dirigida por Carlos Correia. Observo que o projeto ao se classificar como Teatro Inclusivo, pretende inaugurar uma prática artística que supere este modo distorcido de lidar com os deficientes; incluir por este viés significa considerarmos que eles possuem as mesmas competências para realizar qualquer atividade em nossa sociedade; representar ou atuar no teatro seria uma delas. É obvio que não se deve ignorar a natureza da deficiência, no entanto, não para estabelecer critérios de inferioridade ou superioridade, mas sim de respeito às diferenças e limitações naturais.
Penso que o discurso crítico, desse modo, deve ser estabelecido pelos critérios e referenciais poéticos de qualquer outra criação artística teatral. Julgo que assim estarei desenvolvendo um olhar pela inclusão: incluindo todos os atuantes, deficientes ou não, pelos cânones da crítica teatral, sem fazer nenhum tipo de distinção que inferiorize ou supervalorize Pelos olhos dela. Pretendo evitar com isso juízos que poucos acrescentam ao trabalho dos artistas, pois se fundam numa visão que vitimiza os deficientes.
Estabelecidas estas considerações preliminares, apresento algumas questões para reflexão sobre ou a partir a obra.
Em primeiro lugar, a dramaturgia de Carlos enredasse por um caminho axiomático difícil de ser desconstruído pelos outros elementos sensoriais da encenação; o que temos, ao contrário, é a dramaturgia estabelecendo relação direta com os elementos sensoriais – táteis, sonoros, palatáveis e olfativos – remetendo-os sempre em função da ausência do sentido da visão. Mas que isso, o conflito que move as ações centra-se exatamente na situação de estarmos provisoriamente cegos. Este é o grande mote da peça que certamente pretende nos provocar para a dimensão metafórica da cegueira que nos domina em nossa vida cotidiana – principalmente para a questão dos deficientes. No entanto, o modo como a dramaturgia constrói seu jogo limita-se a repetir o que de fato já sabemos – estamos cegos – e a presumir e projetar as angústias causadas por este estado.
A roda de conversa que se estabelece ao final da peça é esclarecedora, neste sentido, pois nos é revelado que a protagonista, Gabriela Condurú, vivenciou, de fato, o drama retratado pela peça: aos 15 anos a jovem atriz sofreu um descolamento de retina que lhe tirou a visão. Então, não é difícil presumir que o dramaturgo partiu do drama pessoal de Gabriela, propondo-nos vivenciar por alguns instantes a sensação de quem perdeu repentinamente um dos sentidos mais monopolizadores de nossa sociedade, a visão. No entanto, o texto redunda na assertiva da cegueira e dela não consegue se desvencilhar, deixando escapar a oportunidade para explorar a dimensão gesto-sensorial presente nos outros elementos da encenação. Esta, aliás, fica completamente atada pela dramaturgia não escapando da relação óbvia que relega aos espectadores a condição de cegos deste drama.
Por esta perspectiva, soa estranho, e até forçoso, diversos trechos do texto que presumem de modo categórico as sensações de angústia que sentimos por estarmos na condição de cegos. Soa mesmo inverossímil e desproporcional a ênfase dramática do texto, posto sabermos se tratar de situação provisória e previamente consentida. Isso, aliás, poderia ser amenizado se a divulgação do trabalho não revelasse esta condição para participar do mesmo. Ao sabermos que ficaremos com os olhos vendados durante a apresentação da peça, já nos preparamos psicológica e antecipadamente para este momento, fragilizando, portanto, tanto a proposta da encenação quanto a própria dramaturgia. Imaginem o choque dos espectadores se não soubessem antecipadamente desta condição. Arrisco dizer que talvez alguns até desistissem de participar. Particularmente, ao saber desta condição, me preparei para curtir este momento e extrair dele o máximo de sensações prazerosas, como por exemplo, a sensação refrescante dos pingos de chuva banhando a face.             
Aponto outro elemento curioso sobre a dramaturgia: uma espécie de discurso maniqueísta se estabelece ao longo do texto confrontando deficientes e não deficientes. A construção do discurso sobre a cegueira vai se desenvolvendo fazendo esta contraposição, de tal modo, que ao final da peça a ideia que se impõe é que só enxerga o essencial quem é cego; ou que os não deficientes estão incapacitados para alcançar e compreender a dimensão social de quem é cego; ou ainda que o mundo seria bem melhor se todos nós fosses cegos. Mesmo sem negligenciar a dimensão metafórica da cegueira retratada pela dramaturgia, fica a sensação de que este tipo de maniqueísmo de alguma forma apenas inverte os pólos de discussão sobre o tema. Enquanto provocação, esta estratégia parece eficaz, pois nos exige reflexão pelo choque de realidade da inversão dos pólos, mas rasa na perspectiva de construção de um posicionamento holista sobre o tema.     
  Sobre as atuações merece destaque a participação de Gabriela Condurú. A protagonista da peça – que descobrimos no final se tratar da personagem que é a personificação da própria “Vida” – a voz feminina que guia nossa jornada pela escuridão. Sua atuação deixa transparecer um vício comum aos atores iniciantes: o texto é oralizado de modo a valorizar o final das frases, acentuando quase sempre a última silaba. Na gíria do meio teatral dizemos que o texto sai cantado, ocasionando uma espécie de falsificação do que é dito – este vício também pode ser percebido em grande parte do elenco desta montagem. Mas trata-se de um problema técnico, resolvido com bastante leitura e repetição de leitura, exercício para a atuante – e os demais atuantes – se ouvir e disciplinar este modo vicioso de falar. Fora esse, e alguns outros aspectos técnicos, a jovem atriz tem uma carreira promissora pela frente, pois percebo segurança e ritmo na sua atuação, na condução da peça inteira. Justiça seja feita: no trato com o texto o elenco inteiro está de parabéns, pois não deixam o ritmo cair em nenhum momento, garantindo o jogo de ação e reação – fala e resposta – durante toda a apresentação.
Neste aspecto a montagem atinge o que considero mais relevante: universalização das atuações ou, em outras palavras, a superação das diferenças. Explico: durante a apresentação é quase impossível perceber quem é deficiente ou não.  Há uma afinação no jogo com o texto que nos impede de fazer esta distinção. Nem mesmo o poema – se não me engano de Cecília Meireles – que é recitado por Lucas – também se não me engano – consegue ser identificado como recitado por alguém que é autista – deficiência notoriamente ligada ao desenvolvimento da oralidade. Portanto, o ritmo da peça – no trato com o texto – merece os parabéns não por se tratar de um elenco com deficientes, mas por nos fazer superar diferenças por meio da fruição da obra. Dito de outro modo: não é bom por ser feito com deficientes, é bom por ser feito com qualidade artística.
Este me parece ser o lugar emblemático para todos que lidam com o desafio presente no trato da arte-inclusão: superar as diferenças por meio das potencialidades universais da arte. O reencontro por meio da arte nos possibilita despir convenções e preconceitos e nos ata novamente o elemento caro e que tanto nos falta na atualidade: humanidade.   

30.06.2015   

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Retratos de Cu – ou Da necessidade de uma poética obsessiva com Genet

Edson Fernando: Ator, Diretor Teatral e Professor da Escola de Teatro da UFPA.
O vigilante debochado abre as porteiras do curral dando as boas vindas ao lar de Genet. As nádegas já podem... Não. Os ânus já podem... Não. Os cus já podem começar seu passeio frenético pela lúgubre mente do poeta dos ladrões: o rebolado buliçoso é a recepção candente que embala todos os cus numa assimétrica rítmica; há cus atirados, mansos, reprimidos, desejosos de porra; o cu esquizofrênico transita nervosamente entre o gozo e o castigo, o desejo e a censura, o querer e o não poder; o cu mais atrevido não demora a estabelecer aliança entre os dedos, a língua e o próprio cu, numa lasciva exorbitante e gananciosa; ainda imerso no reino de suas escritas sujas o poeta Jean parece pairar seu próprio cu numa dimensão distante; seu trato com os restos de papel que o cercam transparecem uma espécie de masturbação poético-literária; o gozo individual, no entanto, é passageiro, pois logo se vê seduzido pela própria obra plasmada nos cus que o cortejam, assediam, agridem e ao mesmo tempo convidam para a fáustica e santa ceia de corpos em estado de êxtase; dispostos na mesa espúria, e ainda mais sedentos de porra, ocorre a orgia universal dos cus; quase todas as formas de repressão foram suprimidas possibilitando os mais diversos encontros gozosos: cu com cu, cu com nariz, cu com pé, cu com mão, cu com língua, língua com língua, língua com pé, peito com boca, boca com cu, pele com pele, dedo com cu, cabelo com boca, cu com orelha, cotovelo com cu, joelho com boca, calcanhar com cu, lábios com lábios, lábios com cu; e em meio a tantos toques libidinosos, o quase esquecido pênis... Digo, falo... Digo, pau... Digo, pica... sim, a quase esquecida pica também entrou na santa orgia dos corpos: pica e cu, o miraculoso encontro dos antípodas ancestrais se realizando quase em toda sua potência; agora também encontram-se pica e cu, pica e pica, pica e boca, pica e dedos, rosto e pica, lábios e pica, pica e cabelos; enfim, ardentes desejos exalando um cheiro de marginalidade seminal. Na orgia universal não há lamentação, não há dor, não há desesperança, não há culpa... Mas a cristandade, presente nos escombros daquelas almas, insiste na redenção. Jean, o poeta do gozo, assume a missão de misericórdia, a missão de entregar-se a Santa Pocilga de Misericórdia. Embora, anseie pela alma despudorada de Jean, este anseia pelo corpo “pudico” da Santa. Ela, a salvação; Ele, a fornicação. Ela, a elevação; Ele, o rebaixamento. Ela, o sublimar; Ele, o enxovalhar. Ela, a alma; Ele, o corpo. Ela, o coração; Ele, o cu. O mesmo cu que dança, sofre, goza e grita pelo direito de ser cu, na sua acepção mais escatológica possível: excretar é viver.
O leitor mais exigente talvez se incomode com o parágrafo de abertura tão extenso ou até tenha desistido de avançar a leitura até aqui. Talvez o incômodo não se dê pelo tamanho do texto, mas por seu conteúdo obsessivo: o cu – termo repetido nada menos que 27 vezes num único parágrafo. Eis uma primeira questão, de fato, importante: a ênfase no tema obsessivo – o cu – encontra-se na montagem teatral Santa Pocilga de Misericórdia ou na recepção que retrata a obra?       
Sabemos que a relação, por vezes conflituosa, entre obra e crítica estabelece vínculos de dependência do último para com a primeira, isto é, não existe crítica sem obra – sendo que a recíproca, neste caso, não é verdadeira. A obra goza de total liberdade para se constituir enquanto tal; seu laço de causalidade centra-se, evidente e exclusivamente, no seu processo criativo, nos elementos que o artista arregimenta para estruturar sua criação. O crítico não tem esse privilégio e autonomia. Vive à sombra da obra; é a partir dela que seu pensamento se ergue e, posteriormente, reivindica o caráter de criação – posto que a crítica também seja considerada uma obra. Uma espécie de sanguessuga, amado e odiado por todos – público e artistas.
A pequena digressão sobre “crítica e obra” longe de justificar qualquer argumento colocado aqui, oferece pistas para situar minha resposta à primeira questão proposta: o cu, enquanto tema obsessivo encontra-se arraigado na obra Santa Pocilga de Misericórdia, montagem teatral com direção e encenação de Kauan Amora – projeto aprovado na 13ª Edição da Bolsa de Criação, Experimentação, Pesquisa e Divulgação do falido IAP / 2014. Pra ser justo, não o cu em si, mas o extravasamento da sexualidade das personagens. É esta sexualidade que é posta, quase sem filtros, em cena.  E, a meu ver, a supressão quase total dos filtros deixou em evidencia o elemento que retrato obsessivamente em minha recepção da obra, isto é, o cu. Assumo, portanto, nesta crítica, o cu como uma espécie de uma licença poética que me aproxima apropriadamente da obra, permitindo-me discuti-la e repercuti-la também sem filtros literários – ou quase sem filtros literários.
Meu primeiro incômodo com a obra encontra-se exatamente no que ela trás de obsessivo: a exaustiva retratação das relações homoeróticas – ou seriam homoafetivas? – das personagens. Do mesmo modo como construo minha licença poética e abuso do termo cu – no parágrafo de abertura – a montagem enreda-se mostrando os desejos, perversões e práticas sexuais das suas personagens. Paradoxalmente a maior virtude da montagem encontra-se exatamente neste modo de construção poética que trás a marca da escrita labiríntica e concreta de Genet; espécie de poesia que encontra sua razão, na cena, por meio da visceralidade física e orgânica dos atuantes. Este é propriamente o núcleo da literatura de Genet, literatura atravessada pelo leitmotiv do culto ao amor homossexual masculino.
Onde reside, então, o paradoxo? Quanto mais se aproxima da obra contundente de Genet, a montagem – na dimensão da ação teatral – somente consegue mostrar mais do mesmo. Assim, observo que Santa Pocilga de Misericórdia nos presenteia com uma vasta seleção de imagens brutas, exaltando e retratando as práticas sexuais de suas personagens. As personagens não se esgotam nas práticas homoeróticas recorrentes ao longo da montagem, mas suas dimensões existências ficam sugeridas ou soterradas pelo acento sexual de cada ação, de cada cena. A dramaturgia de Rodrigo Barata, neste sentido, é elemento fundamental, pois oferece as pistas valiosas – rebuscadas e debochadamente poéticas – para ultrapassarmos esta primeira camada da encenação. No entanto, a força da poesia corporificada nos atos obscenos, despudorados e lascivos dos atuantes, de algum modo, desloca a dramaturgia para segundo plano.  
Não se pode deixar de considerar o contexto histórico que atravessamos: reacionarismo político, intolerância religiosa, institucionalização da criminalização dos movimentos sociais, censuras veladas à liberdade de expressão artística e práticas de homofobia. A conjuntura clama aos formadores de opinião – e aqui se inclui nós artistas – uma posição contundente contra este estado de coisas repulsivas num estado dito laico e democrático. Por este viés, o acento da montagem repousando exatamente nas imagens brutas das relações homoeróticas – consideradas pelo establishment como repulsivas e reprováveis – não deixa de assumir um posicionamento político importante.
A proposição da relação palco-platéia, neste sentido, vai ao encontro disto quando coloca os espectadores na posição frontal a ação teatral – palco italiano. Lembremos que o Vigilante que nos recebe na porta do teatro posiciona-se estrategicamente, durante quase toda a peça, sentado no chão na mesma perspectiva dos espectadores. Este gesto é decisivo, pois determina a condição do espectador diante da obra: vigilante voyeur. Assim, observamos a montagem sob a mesma vigilância que a reprime; é como se fossemos convidados a desnaturalizar nosso olhar de repressão e censura, expondo-nos exaustivamente a estas imagens brutas de homoerotismo.  A direção de Kauan Amora merece os louros desta opção, embora não posso deixar de considerá-la como enfadonha na dimensão da ação teatral. Enfadonho, mas admito: estético-politicamente necessário na conjuntura atual.
Ainda neste viés de conjuntura histórica, é digna de nota a repercussão que a montagem atinge na cidade. Postagens virtuais acusando a montagem de misógina e de orgia barata e gratuita somente reforçam o argumento da necessidade de reflexão crítica e do posicionamento político que este trabalho estabelece. Contra este tipo de reacionarismo falacioso bastaria convidar os interlocutores a visitar a obra de Jean Genet; assim, ganhariam cultura e evitariam posicionamentos tão sectários e moralizantes. O convite se estende a atual direção do teatro Waldemar Henrique que ainda esta semana, protagonizou posicionamento reprovável ao impedir a realização da promoção de ingressos proposta pela equipe da montagem. A promoção consistia em desconto para os cinco primeiros casais homossexuais que topassem dar um beijo no hall de entrada do teatro – para estes o ingresso passaria de R$20,00 para R$8,00.  Alegando não saber, ou não ter sido notificando antecipadamente da promoção, a direção do teatro impediu sua realização. A repercussão junto a platéia que se fazia presente felizmente foi imediata: ao findar a sessão ocorreu um beijaço homossexual no hall do teatro como forma de protestar contra a atitude da direção do Waldemar Henrique. O palco extrapolou pra vida. É a dimensão política que precisa ser resgatada por nossa categoria teatral, esfacelada e reclusa cada qual em seus nichos de trabalho.
Duas outras inquietações que me atravessaram sobre Santa Pocilga de Misericórdia: personagens estereotipados e a paumolescência em cena. No primeiro caso, refiro-me especificamente ao personagem Mudinho. A máscara do personagem recorre aos elementos de sempre: andar descompassado e repetitivo – ora pra frente, ora pra trás; mãos abertas estapeando repetidas vezes a cabeça e o corpo. Uma espécie de clichê dos comportamentos esquizofrênicos. Cito Rolan Barthes – O prazer do texto – pra me ajudar a esclarecer meu incômodo:     
O estereotipo é a [imagem] repetida, fora de toda a magia, de todo o entusiasmo: como se fosse natural, como se por milagre, essa imagem que retorna fosse a cada vez adequada por razões diferentes, como se imitar pudesse deixar de ser sentido como uma imitação. Imagem sem cerimônia que pretende a consistência e ignora sua própria insistência.    
É exatamente a insistência de retornar numa imagem já bastante usada, desgastada mesmo, para retratar personagens acometidos por comportamentos esquizofrênicos a causa de tamanho incômodo de minha parte. “Como se fosse natural”, este uso e abuso de elementos imitativos que na verdade esvaziam a proposta ao invés de enriquecê-la e nutri-la com densidade dramática. Importante dizer que a crítica dirige-se para a máscara do personagem – uso recorrente de trejeitos e tiques –, e não propriamente a atuação de Paulo Cezar Júnior.  O estereótipo não potencializa, mas sim esvazia o que pretende retratar, seja na atuação de Paulo Cezar ou de qualquer outra atuação que se utilize do recurso.   
A segunda questão trás a tona a discussão sobre os limites entre arte e realidade, entre teatro e vida. Então, meu incômodo se localiza no único filtro que identifico na montagem: a ausência da ereção dos atuantes. Ora, pelo que já disse anteriormente temos uma montagem que não economiza nas imagens brutas de homoerotismo. Este parece ser o lugar mesmo onde a proposta encontra seu maior vigor – na perspectiva estética-política. Então, é de causar estranheza o festival de pênis moles que se agrupam, por exemplo, na cena de encontro coletivo de prazer. Estão todos ali exercendo suas fantasias sórdidas, gemendo e alguns gritando de prazer e, no entanto, persiste a paumolescência. O problema, a meu ver, não se trata somente da inverosimilhança da ação – portanto, não se trata somente de uma questão formal –, mas o que a imagem comunica para além dos limites estabelecidos naturalmente pela forma. É como se o discurso da castração e da censura moral, fundada na mais repugnante forma de tolher o ser humano – discurso de matriz religiosa conservadora – encontrasse ainda ecos dentro desta montagem que coloca em xeque exatamente este discurso.
Estou certo de que esta questão não é nada fácil de ser solucionada. Um oximoro que desafia a todos que testam os limites entre teatro e vida.
19.06.2015                
                             


quarta-feira, 17 de junho de 2015

Migalhas do Fio de Pão

Paula Adrianna Barros da Cruz: Atriz e discente do curso de Licenciatura Plena em Teatro da Universidade Federal do Pará.

“Os bonequeiros tiveram que adquirir capacidade de interpretar textos, organizar o espaço cênico, ensaiar e experimentar para interpretar o papel e aperfeiçoar sua atuação” (NASCIMENTO, 2014 P.24).

Ao assistir pela primeira vez o espetáculo Fio de pão: A lenda da cobra Norato do grupo In Bust – Teatro com Bonecos, que estava em cartaz na Estação das Docas do Pará, algo me inquietou: foi difícil envolver-me com o espetáculo, pois não tive como me distanciar e deixar de observar as técnicas – o grupo In Bust utiliza uma poética heterogênea para a construção do espetáculo com muitos tipos de bonecos, como por exemplo o boneco de vara e o boneco de luva (fantoche), cada um possui uma maneira de manipulação. E assim, não pude deixar de observar essas maneiras, pois existe um diferencial que é o ator-manipulador que está presente o tempo todo no espetáculo como personagem dividindo o espaço com os bonecos que os auxiliam na contação e na interação com o público rompendo com a forma clássica de manipulação.
O Fio de Pão traz uma família cabocla nordestina que se apresenta de lugar em lugar e sobrevive do teatro de bonecos narrando à lenda da Cobra Norato. A mãe e o filho manipulam os bonecos contando a lenda e o pai, que é deficiente visual, toca uma viola. O espetáculo é rico em detalhes na sua construção desde a panada montada como se fosse a fachada da casa da família até o Fio de Pão que na realidade não tem nada a ver com a história em si, foi apenas um cachorro magrelo que se fez presente em uma das apresentações do grupo e um dos atores deu um pedaço de pão para ele e assim quiseram o representar como boneco e o trazem no começo da apresentação puxado por um fio.
No entanto, esses detalhes não fizeram o encanto que esperava aos meus olhos, pois não tenho como não salientar o espaço que foi disposto para que o grupo pudesse se apresentar: havia uma luz bem acima dos atores que os focava diretamente, e a fachada da casa da família era preenchida com a luz local, porém, era na fachada da casa que o jogo com bonecos e o ator-manipulador se passava, o que a meu ver comprometeu bastante a interação com os bonecos porque os atores PRECISARAM aparecer mais que os bonecos e a cena se deu em desequilíbrio, sem contar os microfones que eram usados – o do pai que precisava cantar em cena estava baixo e por vezes não o ouvir.
Porém, os atores não perderam o “rebolado” diante das disparidades apresentadas pelo espaço inadequado e improvisado já que neste dia a chuva os desviou do verdadeiro local da apresentação. Que mesmo por esse motivo não deveria atrapalhar, pois poderia se fazer uma estrutura para a apresentação, porque no fim do espetáculo como por ironia foi divulgado ao microfone que aquela apresentação estava sendo financiada pelo Governo e Secretaria do Estado.
 E é de praxe no cenário teatral belenense os recursos, ou melhor, nenhum recurso OFERECIDO pelos órgãos governamentais, digo nenhum, pois as poucas que temos como a de incentivo à cultura, não dão para sustentar nem mesmo as migalhas do fio de pão, os cachês pagos pelos espaços culturais de Belém, não compensam os custos para realizar e estrear um espetáculo seja ele qual for, e com isso os grupos buscam fazer sua prática com menos gente possível e explorando novos recursos para um fazer teatro mais viável e para ter um cachê razoável no fim das contas, digo isso pela experiência como artista e integrante de um grupo de teatro na cidade. E assim é a construção do Fio de Pão com pouca gente e o material utilizado para a construção dos bonecos e da fachada e outros é material reciclado e feito justamente para se adequar a lugares diversos, porém merece um mínimo de estrutura como qualquer outro.
E mencionando os espaços, como se não bastasse os poucos que temos ainda nos fazem pagar pautas para nos apresentarmos. Resta-nos espaços alternativos com os anfiteatros, ou casa de grupos como a Casa dos Palhaços, o Casarão do Boneco, a Casa da Atriz, o mais recente a Casa Dirigível que são sempre locais de parcerias artísticas, e aproveito também para mencionar o mais “novo” espaço ocupado pela classe artística o Solar da Beira. E ainda assim o grupo In Bust utilizou a apresentação para pedir uma “migalha” ao público para a restauração do Casarão que no momento encontra-se em situação precária, mas não deixa de ser um cenário artístico e cultural da cidade.
Essa problematização não é nova, muito menos estou sendo a primeira a mencionar, nem serei a última. Digo, pois se faz necessário diante de um grupo como a In Bust, e tantos outros que têm suas montagens comprometidas por uma série de deficiências encontradas pelo caminho dos artistas da cidade. O desequilíbrio que percebi no espetáculo “Fio de Pão”, estava além do alcance dos atores-manipuladores, e não apenas deles mais de muitos outros grupos, e como cita Paulo do Nascimento mencionado de início, que trago em comparação para dizer que a classe artística há anos vem adquirindo capacidades de aperfeiçoar seu fazer para se defrontar com o cenário da cidade e as disparidades apresentadas pela ordem de poder do Estado.
17.06.2015


sexta-feira, 12 de junho de 2015

Entre a brincadeira e o ócio - Fio de pão.

Andrey Gomes: Aluno do Curso de Extensão "Crítica em Teatro e Dança" - ETDUFPA

Quando perguntei ao mestre mamulengueiro Sólon de Carpina (1920-1987) como e quando é que tinha começado essa história de teatro de bonecos, ele sorriu e disse: “Chico, o boneco é anterior ao homem”. Como assim? Perguntei, e ele explicou que antes de Deus fazer o homem, já havia feito os bonecos de vegetal, por exemplo, a boneca de milho... Depois é que esses vegetais se transformaram em gente como nós” (SIMÕES, 2005).

Seguindo a gênese do teatro animado, discorro sobre a obra que estabeleceu uma dramaturgia até então incipiente por essas bandas – Fio de Pão, a lenda da cobra Norato é uma idealização do grupo In bust - Teatro com bonecos. Fui conferir e comprovei no ultimo domingo a importância do espetáculo como linguagem, semiose de uma “brasilidade-amazônica” ainda que apresentada em situação adversa.
Acredito que a encenação em espaços inusitados seja um desafio, mas também possibilite um tatear por novas vias, nesse caso, a apresentação que inicialmente seria ao ar livre foi transferida para a parte coberta (talvez por consequência da chuva) onde ocorre o projeto pôr-do-sol na Estação das Docas. A mudança, sem dúvida, exigiu adequação dos intérpretes a um espaço menor, com iluminação inapropriada, influenciando a interação com os bonecos, exigindo maior intervenção do ator-manipulador; mas lembremos de que não se trata de um teatro morto e sim de metalinguagem, pois bebe na fonte dos “mamulengueiros” instáveis e dinâmicos em sua atemporalidade – para Peter Brook cada trabalho é único e tem seu próprio estilo, mas nos perdemos na tentativa de especificá-lo, principalmente em se tratando de uma linguagem singular como a do In Bust.
Fui levado pelo olhar curioso de um desconhecedor da dramaturgia tradicional a embarcar na oralidade cordelista cantada pelo cego Jurandir, violeiro apresentando sua família e o “Fio de Pão”, cãozinho animado que passou latindo ao meu lado puxado por Girino, filho único que ia ajudar a contar a história; Infelizmente, não pude ouvir com clareza os improvisos do cantador, levando-se em conta a má difusão sonora. Destaco esses elementos em uma reavaliação do espetáculo, confessando minha indiferença a todos os detalhes e simplesmente percebendo a reação do público quando provocado naquele processo, pois em relação à linguagem do mamulengo, a companhia mantém o principal: a brincadeira COM e PARA o povo.
Suponho que nas condições apresentadas, o boneco fique em “segundo plano” mesmo porque se trata da lenda contada pela família mambembe, uma realidade paralela dentro da narrativa, que apesar de utilizar ator e boneco em cena como recurso estabelecido, terá seu repertório definido no ato da apresentação, dependendo de fatores externos como, por exemplo, espaço cênico e público (inclusive em sua quantidade). Portanto interagi mais com a “família” do que com os bonecos, sabendo que a proposta do In bust não é a de seguir o teatro mamulengo ou qualquer outro tradicionalmente falando; prova disso está na sequência em que Girino derruba a panada com o boneco, ou no momento em que chora a morte da cobra tendo o consolo na explicação da mãe de que se trata de um brinquedo!  Vivenciamos o teatro de animação.
Os personagens brigam e brincam, manipulando regras, livres da “preocupação” com o público. Ludicidade particularadquirida pelo grupo ao longo dos anos – ficam os personagens-tipo, a característica improvisacional do texto, a “carta na manga”, o humor satírico onde se estrutura a interação com a platéia, nisso percebemos um hibridismo peculiar. Ressaltando que o teatro de animação inclui a confecção e caracterização dos bonecos, pude constatar que as famosas bonecas de Camiranga, região de cachoeira do Piriá foram influenciadas a partir de uma oficina ministrada por Aníbal Pacha, membro do In bust, naquela comunidade.
Na verdade senti uma profunda identificação de adultos e crianças com o teatro feito naquela noite, algo insólito para os jovens e há muito, já esquecido pelos velhos. Finalizo seguindo o percurso do espetáculo no apelo feito pelo grupo em manter o Casarão do Boneco em atividade, apelo que por sinal, é semelhante ao apelo do cego Jurandir iniciando a narrativa e justificando o “ganha-pão” de sua família, diz-se que a arte depende do ócio para existir, e é inimiga da aristocracia que como bem sabemos, depende da obediência; se o cego e sua família comem, ou se o casarão permaneça, cabe ao povo decidir:
Há um ócio criador, há outro ócio danado, há uma preguiça com asas, outra com chifres e rabo! (Ariano Suassuna, Farsa da boa preguiça).

Pois o boneco vai continuar a brincar!
12.06.2015

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Marionete por um fio

Silvia Teixeira: Atriz e Graduanda de Licenciatura em teatro – UFPA.

No domingo, na Estação das Docas, instituição da Secretaria de Cultura do Estado do Pará, presenciei simultaneamente dois espetáculos de teatro, um que denominava-se por teatro com bonecos e o outro  de teatro de bonecos: o primeiro era o do Grupo In Bust - Teatro com Bonecos, e o segundo o qual batizei de Grupo Manipão Teatro de Bonecos, o qual merece meu destaque, pois conduziu sua marionete pelos fios, suas técnicas de manipulação foram tão mal executadas, contribuindo para o primeiro, que quase por um“ fio” de ser sua pior atuação.  
Começo este parágrafo tecendo a respeito ao nome dado ao espetáculo com bonecos “Fio de Pão” que por alguns segundos pensei que o fio dado ao espetáculo justificaria a técnica de manipulação de boneco de marionete (bonecos grandes controlados por fio em uma cruzeta), mas não era, por incrível que pareça o nome surgiu de um fato curioso durante uma apresentação. Um cachorro raquítico fez-se presente durante o espetáculo, então um dos atores deu pão para o pobre animal comer, logo o batizaram de “Fio de Pão”. E para recordar a presença do bicho, os integrantes acrescentam um cachorro de boneco o qual viria ser o animal de estimação do garoto Girino que também o batizou de “Fio de pão”.
Fio de pão - A Lenda da Cobra Norato, narra a lida de uma família nordestina no Pará, que saem de feira em feira apresentando-se com seu teatro de bonecos com a narrativa da Lenda da Cobra Norato, onde o pai, deficiente visual, toca a viola, a mãe conta a lenda e o filho junto a mãe manipulam os bonecos e os objetos. O grupo apropria-se de uma arte híbrida entre o teatro, teatro de bonecos, contação de história e música. Os bonecos não são protagonistas dessa narrativa e muito menos os atores, eles compartilham do mesmo espaço, ora os manipuladores usam a neutralidade no manuseio dos mesmos, ora o boneco é uma extensão do próprio corpo do ator e outrora o ator apresenta a sua própria personagem no boneco em um jogo de co-presença (CAVALCANTE, 2008, P.40).
O grupo quebra as regras do jogo do teatro de bonecos clássicos, por isso a In Bust entra na categoria do Teatro com Bonecos, reafirmando esse conceito Henrique Sitchin, coordenador de Centro de Estudos e Práticas do Teatro de Animação de São Paulo, tecendo um comentário em seu livro “As possibilidades do Novo Teatro de Animação”. Geralmente, os grupos de teatro de bonecos clássicos utilizam os bonecos homogêneos em suas poéticas, a In bust faz a construção poética heterogênea, mesclando vários modelos, como o de vara, bonecos de miritis, fantoches e manés-côcos. E o modelo que fez meus olhos brilharem, são os que representavam o casal ao darem um salto no tempo e relatarem o momento que conheceram-se; os bonecos eram de vara, com cintura de cuia, utensílio de grande expressão na culinária paraense.
Um fato muito importante a ressaltar é a didática do ator Aníbal Pacha que atuara como Girino: ao apresentar as cobras, antes de dar vida as mesmas, mostra para as crianças que as cobras não eram de verdade e sim bonecos, quebrando o ilusionismo para retrair o medo que as mesmas poderiam ter ao longo da apresentação.
Destaquei anteriormente a segunda categoria de bonecos apresentada, por serem puxados por fios e conduzidos por um manipulador – o qual domino de Governo. No espetáculo havia personagens cegos, mudos e surdos, e como é desgastante tal encenação; pois sabemos que essa técnica de manipulação é milenar. O espetáculo apresentado pela Cia do Governo foi a falta de estrutura necessária para receber artistas e público. O grupo In Bust apresentou-se em uma passarela de grande fluxo de pessoas, a estrutura do som, não havia qualidade, aliás, não tinha um retorno para que o público entendesse a letra cantada pela personagem Jurandir, a maioria das pessoas assistiram em pé pela escassez de cadeiras, e como o espaço não é apropriado, não havia uma iluminação que valorizasse a entrada dos bonecos em cena.
É até louvável a agenda da Estação das Docas abrir espaço para o compartilhamento do teatro com a população, porém é lamentável estabelecer que somente migalha de pão é necessário. E lamentável ainda, em ter um lugar que abriga diversos espaços para o alimento do corpo e não oferecer um espaço mínimo e adequado para o alimento das artes. 

Diante de todos esses fatos o espetáculo Fio de Pão - a Lenda da Cobra Norato o qual já venho acompanhando há quinze anos, só não abateu-se pelo profissionalismo e o compromisso que a In Bust tem de levar o teatro para o povo, e acreditar que a arte é um direito de todo o ser humano.
10.06.2015 

terça-feira, 9 de junho de 2015

Fio de Pão, a lenda da cobra Norato

Geane Oliveira: Atriz e Graduanda da Licenciatura em Teatro – UFPA  
Na fila de entrada para o teatro começa um grande burburinho, um sotaque diferente do paraense invade o espaço, e eis que surge um trio de retirantes nordestinos. A interação com o público vem acompanhada de um educado e gritado “boa noite”. Os personagens são apresentados através de uma breve conversa entre eles e o espectador. O pai Jurandir é cego e em alguns momentos é guiado pela esposa Jandira e em outros pelo filho Girino. Este último arrasta por uma cordinha um cão magrelo que ele chama por Fio de Pão – este cão na verdade é um boneco com extensor. O filho pede comida ao público para alimentar o cão e em meio ao alvoroço causado pelos personagens o público adentra o teatro. Já no palco, onde o cenário é composto apenas de um banco e uma panada que auxilia para manipulação dos bonecos, a família entoa uma canção que fala de sua trajetória. Durante a canção Jandira e Jurandir recordam o momento que se conheceram, Girino assume então a cena manipulando dois bonecos que simulam o primeiro encontro de seus pais.
   A técnica de teatro com bonecos usada pelo grupo In Bust – Teatro com Bonecos é algo indispensável de ser mencionado, pois considero importante  pontuar a técnica que cada grupo da cidade utiliza para comunicar-se no palco, mas não tenho a intenção de descrever ou apontar detalhes desta técnica, que ao meu ver foi muito bem executada pelos atores-manipuladores. Reconheço a beleza poética contida no espetáculo que possui como conteúdo histórias do folclore paraense, manipulação de bonecos e canções em forma de cordel. No entanto, quero focar em um tema que se destaca na dramaturgia desse espetáculo: a exploração do trabalho infantil. Talvez a In Bust não tenha a intenção de discutir este tema como foco principal de sua dramaturgia, mas é o recorte que faço.
O recorte está na cena onde Girino é colocado para realizar o trabalho de manipulação, sua mãe lhe auxilia, enquanto seu pai narra as histórias ou realiza a sonoplastia das cenas. Em determinado momento o menino já cansado se recusa a trabalhar e através de uma brincadeira derruba a panada; a mãe irritada persegue o garoto com uma sandália, Girino se esconde na plateia estabelecendo uma identificação com o público infantil mesmo sendo este personagem interpretado por um adulto. Quando a mãe encontra o garoto lhe dá umas palmadas e lhe põe para arrumar a bagunça e retomar o trabalho.  Nesta cena o tema que aponto aparece de forma sutil por estar dentro da comicidade do espetáculo, não considero isto um problema. As cenas seguintes retratam o cenário de miséria vivido pela família o pai entoa uma canção relatando uma situação onde conseguiram comida de graça, desta comida guardaram alguns biscoitos embaixo da terra, os quais decidem dividir com o público.
Estas cenas estabelecem um vinculo com os resultados de pesquisas afirmando que uma das principais causas da exploração infantil estão associadas às condições financeiras dos pais. No ano de 2014 a região Norte do país foi considerada campeã na exploração do trabalho infantil, com números que apresentam a precariedade da nossa região. Não há como ter um olhar otimista para este cenário, pois as soluções ao problema ainda estão acreditadas em programas sociais, os quais utilizam o discurso de que não há necessidade da criança trabalhar, pois a renda que recebem é o suficiente para sustentar a família. 
Entre tantos programas destaco o PETI (Programa  de Erradicação do Trabalho Infantil), criado em  1996  tendo como objetivo a retirada de crianças e adolescentes entre 7 e 14 anos da prática de trabalho precoce, exceto quando na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos.  Em sua estrutura o programa parece perfeito, no entanto não consigo enxergar a eficácia em suas ações. O programa possui suas sedes apenas nas aéreas urbanas o que já vejo como deficiência, porque mesmo tendo profissionais disponíveis para visitação ás aéreas rurais, não pode se dizer que isto  é o suficiente para solucionar o problema, pois é nas sedes que a criança ou adolescente frequenta a jornada ampliada, onde recebem reforço escolar além de desenvolverem atividades esportivas, artísticas e de lazer. Outro olhar não amigável que tenho ao programa está relacionado á transferência de renda por meio do Programa Bolsa Família, renda irrisória que na maioria das vezes não é compensada pelo valor que as famílias obtém com a criança ou adolescente trabalhando. A solução não seria oferecer uma renda superior a gerada pelas famílias, mas é fato que as políticas de emprego e geração de renda precisam funcionar para que o PETI consiga ampliar seu objetivo.      
 No dia 12 de junho é o dia Mundial contra o Trabalho Infantil, mas muitos Girinos continuaram desenvolvendo atividades para ajudar na renda familiar, pois os programas sociais precisam rever suas ações, sem enfatizar em suas migalhas (ralos fios de pão), tornando a beleza das leis de proteção á criança e ao adolescente em algo concreto.   
Direitos que não funcionam direito!

09.06.2015

sábado, 6 de junho de 2015

Desencantadas S.A.tiras do Encantado

Louise Bogéa: Servidora pública federal do Museu da UFPA.

A releitura das fábulas encantadas da Disney feita pelo espetáculo “Encantados S.A” teve seus momentos, ontem, no teatro Cláudio Barradas. O que se iniciou até um pouco sem graça foi, aos poucos, ganhando vida, juntamente com o garoto central do enredo, o Noque, ou melhor, o Pinóquio.
Inspirado na famosa fábula da personagem, o enredo nasce a partir da solidão do garoto – com apenas seu brinquedo preferido como amigo – até quando, ao perceber acontecimentos suspeitos e sobrenaturais, encontra-se com uma organização secreta que é nada menos que a mistura das principais personagens de outras fábulas da Disney: as princesas, os príncipes, os vilões, as fadas e outros chamados ridiculamente de “restantes”: todos constituem a intitulada “OSSEAPEPROFOSOI”. A sátira é, assim, realizada, principalmente, com a entrada de um desses grupos no palco. A meu ver, o seu ápice fora durante a reunião da organização, quando todas as personagens estavam juntas.
Relembro-me agora que no original “As aventuras de Pinóquio” de Carlo Collodi (1881) – assim como na versão adaptada da Disney –, a personagem principal era o boneco de madeira, este transformado em garoto, após adquirir sentimentos e experiências de vida. Há, também, releituras da obra original onde a reflexão se dá sobre as pessoas de carne e osso virarem bonecos – marionetes – de algum sistema. No espetáculo, porém, a revelação que o garoto era o “Pinóquio” e o seu brinquedo, o “grilo falante”, deu-se apenas ao final, por meio do aparecimento do nariz grande (característica carregada de simbologia no nosso imaginário) e das vestes do grilo. Inicialmente, o garoto fora apresentado apenas como uma criança mimada e solitária, para depois ser considerada como especial pelos membros da organização dos encantados.
 Ressalta-se que nem o drama, nem tampouco as lições de vida do original foram enfatizadas durante a peça, mas sim, a pura sátira, para entreter o público. A comédia era, por vezes, relacionada com o enredo dos originais; outras vezes, com fatos cômicos mais atuais; ou ainda, com a própria estupidez das personagens interpretadas. A atenção até fora roubada de Noque e do seu amigo, para focar na sátira entre os membros da organização secreta, voltando, apenas ao final do espetáculo, o foco no garoto – momento de sua revelação como Pinóquio. Percebe-se, aqui, que a intenção fora a de mostrar o amadurecimento de Noque, ao encontrar o seu amor, deixando o seu amigo imaginário, para o encerramento da peça.

Portanto, a trama repassa as lições de vida propostas no conto de fadas, dando ênfase na comédia. Vale mencionar que o espetáculo parecia ser voltado ao público infantil, mas ele acabou englobando uma gama maior, sendo capaz de atingir todas as idades: principalmente aqueles que sejam especiais, como o Noque, e consigam ver um mundo secreto, ou seja, mais além do desencantado mundo real que vivemos – ou uma mistura deles.
Vale mencionar algumas falhas pertinentes, ainda que alheias ao espetáculo: o horário prejudicou um pouco a apresentação, cansando o público; e limitações quanto à estrutura do teatro – cadeiras um tanto desconfortáveis e o palco demasiadamente baixo, impedindo sua observação plena pelos espectadores.
Os artistas se mostraram talentosos e houve certa criatividade na narrativa, em sua forma de transmitir o humor – inclusive na execução de alguns pequenos improvisos pelas personagens. Nota-se que o seu trabalho é realizado com comprometimento e certo entrosamento entre a equipe dos artistas. O resultado foi o público presente sendo notadamente entretido. Mesmo os mais preconceituosos – houve a interpretação de personagens femininas por homens e vice-versa no elenco – desatinaram-se a rir das cenas apresentadas.
Destaca-se a tentativa de transpor o encantamento à nossa realidade e, ao mesmo tempo, interagir com os presentes, ao, dada por encerrada a peça, esconder doces embaixo de duas cadeiras da plateia, para presentear os “especiais”. Ainda durante a despedida, pediu-se, também, para falarmos em uníssono a palavra “Xuxa”, movimentando os braços em forma de um “X”, conforme era feito pelos membros da organização secreta do enredo, para, enfim, tirarmos uma fotografia todos juntos.
 Em uma última análise, apesar dos esforços, preciso dizer que o entretenimento se caracterizou como algo momentâneo e efêmero: eu gostei da peça e achei-a divertida, mas não a veria novamente. Acredito que o objetivo de uma arte, esta seja qual for, é o de se tornar eterna – ou pelo menos ter esta visão –, ao se mostrar ao mundo. Portanto, o espetáculo mereceu as palmas, mas, assim como tantos outros, acabou-se ali, juntamente com elas.
A falha, talvez, centrou-se na própria escolha da essência do humor da obra, ao ridicularizar algo eterno, ou que sobreviva após tantas gerações. Isto não significa criticar a sátira, pois esta pode ser interessante – se objetivar uma intervenção e/ ou mudança em algum contexto–, mas sim, a sátira sem sentido, ou apenas pelo simples entretenimento por meio do ridículo. Arrisco dizer que tal finalidade seja da grande maioria das artes cômicas atualmente, não apenas do espetáculo “Encantados S.A”.
06.06.2015

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Circo no Theatro da Paz

Louise Bogéa.

Servidora pública federal do Museu da UFPA.


V FESTIVAL DE DANÇA ANEC-PA
Sobre a organização: A Associação Nacional de Educação Católica do Brasil (ANEC) – anteriormente denominada Associação de Educação Católica do Brasil (AEC/BR) – foi criada decorrente da incorporação da Associação Brasileira de Escolas Superiores Católicas (ABESC) e Associação Nacional de Mantenedoras de Escolas Católicas do Brasil (ANAMEC). A ANEC é uma associação de direito privado, constituída por pessoas jurídicas, sem fins lucrativos e econômicos, de caráter educacional, cultural, beneficente, filantrópico e de assistência social, ligada à Educação Católica no Brasil e reunida em comunhão de princípios com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Data: 30.05.2015
Local: Theatro da Paz

Percebeu-se que o tema meio ambiente e natureza, relacionado às emoções humanas foi o guia para quase todas as apresentações das escolas associadas à Associação Nacional de Educação Católica do Brasil (ANEC), incluindo os colégios Santa Catarina de Sena, Santa Rosa, Marista Nossa Senhora de Nazaré, Santa Madre, Gentil Bittencourt, São Paulo, Santo Antônio e outras. A Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará (ETDUFPA) também se fez presente no evento, este iniciado às 18:30h deste sábado, estendendo-se até 2h e 30m de duração, com o total de 32 apresentações
Em um primeiro momento, com a entrada dos organizadores e representantes das instituições, houve apenas um discurso, proferido por uma freira. Percebeu-se certo desleixo no figurino dos responsáveis presentes no palco, dada a utilização de minissaia e outras vestes inapropriadas à ocasião, inclusive o próprio figurino de algumas das jovens dançarinas eram inadequados, sendo que é expressamente proibida a entrada de vestes similares, no ingresso cedido pelo teatro.
Entre a mistura de estilos, cores, interpretações e canções de diferentes épocas durante o evento, ocorreu o infortúnio da apresentação da ETDUFPA: uma dupla de palhaços, ou mais especificamente, um pierrô e uma pierrete, com a inclusão de um beijo na sua performance. Percebeu-se que havia técnicas de dança, o figurino estava de acordo, mas houve a carência de criatividade, tornando-a um tanto monótona. Vale mencionar que a personagem retratada se refere ao palhaço triste e apaixonado que fora traído pelo seu amor.
A história da dança não fora contada corretamente, resultando em um beijo frio, sem a transmissão de emoção – se houve, entre os dançarinos – e quase sem sentido, para a maioria dos presentes.
Acredita-se que, para uma performance de dança com qualidade, significa um figurino elegante ou pelo menos de acordo com a proposta ditada pela música; a execução da performance em um baixo número de artistas, pois, quanto menos, melhor; e o estilo de interpretação, dado pela interação dos dançarinos com a música ou através do conto de uma história, ao dançar.
A iniciativa da ANEC é, apesar de elogiável – ao viabilizar a inclusão através da arte –, se levar em consideração técnicas de dança maduras, principalmente em relação ao sincronismo de movimentos entre os dançarinos, pode-se dizer que elas constituíram apenas algumas das apresentações, incluindo a da ETDUFPA. Entretanto, independentemente da idade, houve a carência de emotividade e expressividade na execução da coreografia, ou seja, nos movimentos corporais e expressões faciais; mudanças de ritmo demasiadamente abruptas, sem muita ligação entre elas; e a contrastante falta de sincronia entre o figurino e a música. E, ao meu ver, no caso da dupla dos palhaços tristes, a tristeza não fora transmitida, nem tampouco a melancolia, mas sim, apenas monotonia.
Acredita-se que a proposta dos festivais da ANEC são amostras de dança, com o objetivo de incentivar a prática nas escolas associadas, entretanto, eventos com tais características não deveriam ser público-alvo do Theatro da Paz. Este que já apresentou obras do maestro Carlos Gomes e outros grandes espetáculos, durante o período de ouro da borracha.
Ressalta-se que o evento se tornou cansativo, dada a saída de mais da metade dos presentes até o seu encerramento. As últimas apresentações já foram destinadas a um público exausto, sendo que o apresentador realizou a despedida, sem discursos finais.
Em uma última análise, não desprezando o trabalho da ANEC e de suas escolas associadas, porém, o Theatro do Paz, digníssimo em seu valor histórico-cultural, permanece ávido por apresentações a sua altura. Fato que demonstra um cenário um tanto que decadente da arte paraense.

05.06.2015

terça-feira, 2 de junho de 2015

Encantamento Desfeito na Ruptura

Por Louise Bogéa: Servidora pública do Museu da UFPA

Eu estava animada com a ideia de assistir a um espetáculo com patrocínio do governo, na Estação das Docas, e, dado todo o valor simbólico do lugar, pensei que encontraria um grande espetáculo, quero dizer, elegante. Por esta razão, talvez, decepcionei-me, por alguns segundos, ao deparar-me com aquela rede como cortina de um palco – não havia piso de palco – e um considerável número de pessoas – metade em pé – a quase céu aberto. Isto significava sem teto esplendoroso também.
Ao encontrar com o Prof. Edson, fomos para a lateral, quando comecei a observar as personagens: Agradeci a Deus que não estávamos perto delas. Durante o espetáculo, tive mais simpatia pela personagem feminina; indiferença em relação ao violonista; e medo do filho. Confesso que me emocionei em certas partes da história do Norato – a da sua mãe (boneca) devendo matá-lo foi comovente.
Considero, neste caso, crucial a interação dos artistas com o seu público, porém, não posso dizer que a minha experiência fora positiva com o cachorro faminto do enredo. Se houver próxima vez, lembrarei de levar comida na bolsa.
Com base na tese de NASCIMENTO (2014), houve uma mudança na forma de utilizar o objeto (boneco), com o manipulador, tornando-se ator, ao entrar, cada vez mais, na cena junto com o ser inanimado:
Oriundo de um teatro já desmitificado, consciente da sua artificialidade e da especificidade do boneco, contaminado por outros meios de expressão, em que a metáfora passou a imagem poética da linguagem teatral, a principal reforma do teatro de bonecos pôs em primeiro plano o jogo do ator.

E a produção de teatro In Bust – Teatro com Bonecos, por meio do espetáculo “Fio de Pão: A lenda da cobra Norato”, vem com esta proposta de rupturacom o teatro de bonecos clássico. A presença do ator é marcada pela sua interpretação de uma personagem no enredo, não podendo passar despercebido pelo público.  CAVALCANTE (2008, apud NASCIMENTO, 2014) classifica esta presença no jogo em não-presença, quando o profissional não é personagem, portanto, neutro, agindo como sombra do boneco; co-presença, introduzindo a participação do profissional, este podendo,eventualmente, transformar-se no objeto ou emitir alguns signos do inanimado em seu corpo; animador, ao assumir o seu papel como tal, expondo-se para intervir diretamente na cena, sem a utilização do objeto; e contraparte, onde há a interpretação de uma personagem pelo profissional e outra no objeto a ser manipulado por ele.
É possível perceber que as três diferentes formas de participação do ator estavam presentes no espetáculo, sendo que “em quase todas as encenações do In Bust os personagens dos atores são animadores” (NASCIMENTO, 2014). E a comédia é geralmente realizada por meio da intervenção direta do profissional. Diferentemente do ponto de vista do autor da tese, porém, considero que a co-presença fora alcançada, durante o espetáculo.
Nenhum desses casos citados se enquadra realmente à co-presença sugerida por Caroline Holanda. O que se vê são características do personqgem do boneco sendo reforçadas pelos personagens dos atores, ou, ao contrário, os personagens dos atores aproveitando ações dos bonecos para inserirem suas emoções ou as suas próprias ações (NASCIMENTO, 2014).

Ao meu ver, a co-presença de CAVALCANTE (2008), ou seja, o profissional apresentando a mesma personagem do objeto no seu corpo, deu-se no momento em que Girino se transforma na galinha –não apenas emitindo símbolos dela –, refugiando-se atrás do pano, para, então, a sua mãe surgir com uma galinha (objeto) entre suas mãos. Neste instante, o ator se confunde com o objeto, não apenas respondendo a determinados estímulos na cena, como extensão a reações advindas do boneco.
Vale mencionar que os atores conseguiram aparecer, mantendo a atenção no boneco (personagem) principal, a cobra Norato. E conseguiram interagir com o público presente de maneira satisfatória, principalmente com as crianças. Percebeu-se que a heterogeneidade da peça foi responsável pelo entretenimento.
Em uma última análise, acredito que tanto o teatro de bonecos clássico quanto o com bonecos – caracterizado pela inserção do ator no jogo – poderia ser aperfeiçoado por meio da utilização de tecnologias, ampliando os seus efeitos no público, na tentativa de modernizar a prática sem perder a sua essência.
01.06.2015