domingo, 8 de dezembro de 2013

Ekhart e as artimanhas do grotesco.

Espetáculo: Peço a deus que me livre de deus.
Credenciais do autor da crítica: Edson Fernando - Ator e diretor Teatral, Prof. de Teoria do Teatro da ETDUFPA, atua no COLETIVO DE ANIMADORES DE CAIXA e como pesquisador no GITA – Grupo de Investigação do Treinamento Psicofísico do Atuantes. 

A marchinha de carnaval Jardineira, de Orlando Silva, oferece o contraste inicial: uma animada cantoria entoada pelos atuantes na escuridão da entrada do teatro; ouço as vozes, mas não vejo os corpos; já sentado na platéia, vislumbro um imenso trono e, por trás, a torre do que aparenta ser um castelo; as vozes ganham forma na figura dos atuantes vestidos com túnicas negras, capuzes da mesma cor sobre a cabeça; a cantoria ganha o centro da área de atuação e só é interrompida pela seminudez histriônica da jovem que irrompe a cena e anuncia-se vítima de estupro. O contraste agora se dá entre a alva nudez da vítima com o negro vestuário dos demais; percorrendo os olhares indiferentes daqueles que parecem ser seus algozes, resta à jovem exibir seu grito de dor, conseqüência imediata da sua violação carnal; sua pele grita a dor de uma penetração forçada; seus membros, num histrionismo desconcertante, desferem golpes cruéis contra si como se estivesse a ferir o próprio estuprador; mas é a indignação de sua alma que se instala no espaço por meio de sua vociferação contra uma crueldade ainda maior do que a já sofrida: a ideologia machista que transforma a vítima em culpada.            
A atmosfera trágica desta primeira cena é dissipada pelo exagero na atuação. Eis o ponto chave desta montagem: o grotesco, ou como dizem alguns autores o “drama grotesco”. Estas considerações iniciais referem-se à Peço a deus que me livre de deus, uma montagem inspirada na obra “Ekhart, O Cruel”, de Luiz Fernando Emediato. Com direção dos Professores Paulo Santana e Marluce Oliveira a montagem teatral é resultado da disciplina  Prática de Montagem que envolve os alunos dos Cursos Técnicos em Ator, Cenografia e Figurino da ETDUFPA.
Engana-se, porém, quem julgar precipitadamente que o exagero, citado acima, comprometa a narrativa inicial da montagem; pelo contrário, encontra-se exatamente no histrionismo da atuante Tainá Monteiro os elementos fundamentais para a compreensão do grotesco – enquanto gênero – para além da superficialidade da forma. É este aspecto que gostaria de ressaltar em minhas breves considerações.
Quando o senso comum aciona a idéia do grotesco, via de regra, faz uma associação com o que provoca o riso pela extravagância das formas, ou melhor, pela deformação premeditadamente ridícula ocasionada pelo exagero sensível na aparência. No caso das formas humanas o grotesco ganha relevos jocosos suscitando quase que de modo imediato a censura – ainda que muitas vezes velada – e a reprovação de ordem moral ou social. No entanto, se pensado enquanto gênero – ou subgênero dramático – sua filiação volta-se, segundo Patrice Pavis (2005, p. 188-9), para sua estreita relação com o tragicômico e, assim como este último, pode ser considerado um gênero misto, isto é, àquele onde as fronteiras entre dois modos de operacionalizar o drama – no caso do tragicômico a tragédia e a comédia – são borradas propositadamente para se atingir o efeito desejado. Tal efeito é atingido exatamente por uma espécie de equilíbrio vacilante que alterna caoticamente o risível e o infortúnio proporcionando um jogo onde os contrários não permitem a hegemonia de nenhum dos gêneros.
Esta breve digressão é necessária para refletirmos novamente sobre a cena de abertura da montagem em questão. A vociferação lancinante de Tainá, sua gesticulação indômita e espasmódica, sua movimentação aleatória e descompassada contrastam com a reflexão crítica de seu discurso, uma apologia pela luta feminina contra os ditames do corpo. Meu riso decorrente da movimentação grotesca da atuante é anulado pela situação trágica que a mesma contextualiza diante de nossos olhos; mas a seriedade da situação também se arrefece diante da quase epilética atuação. Considero este um dos momentos em que a montagem aproxima de modo primoroso, o sublime do grotesco.                                   
Há drama no grotesco e para se alcançá-lo é necessário atenção a este jogo de contrários que produzem efeitos surpreendentes na recepção do fenômeno cênico. Penso que a montagem oferece aos atuantes oportunidade para o exercício deste jogo delicado e complexo onde a forma, ou a deformidade física dos personagens deve ser pensada com um dos elementos para o trabalho de composição dos mesmos. Mas ficar somente na forma é por em risco a riqueza complexa da dramaturgia proposta em cena. Refiro-me a todos os elementos grotescos da visualidade que a montagem arregimenta e apresenta de modo bastante eficaz, nas resoluções cênicas propostas: a textura porosa das deformidades físicas colocadas na composição dos figurinos, assim como o exagero dos membros – em particular dos órgãos genitais – e dos seus adereços cênicos; a maquiagem segue primorosamente em consonância com a proposição dos figurinos de tal modo que é difícil fazer a distinção entre os elementos (maquiagem e figurino) sem um olhar mais atento e criterioso. Atrevo-me a dizer que o elemento em desacordo na encenação repousa na sonoplastia, ou melhor, em algumas músicas que ambientam as cenas, e o exemplo maior dessa minha implicância é uma canção de Sidney Magal.
Todos estes elementos da encenação, por mais justos e acertados que estejam, dependem de um componente fundamental na linguagem do Teatro, isto é, o trabalho criativo do atuante. É sobre ele – o atuante – que se assenta a responsabilidade pelo jogo vital no “drama grotesco” descrito acima. E neste aspecto, o trabalho já começou, mas precisa ser bastante amadurecido a cada apresentação. Observo que o caminho natural que se estabeleceu na atuação da montagem assenta-se ainda no grotesco enquanto forma. Assim, observo o desempenho dos diversos papéis perseguindo uma forma de representação exagerada – em alguns momentos farsesca mesmo – com volume de voz elevadíssimo e gesticulação histriônica; os papéis cuja deformidade física é determinada pelo figurino seguem a mesma tendência. Em meio a esta forma estabelecida de representação a montagem perde em vigor, pois se estabelece uma linearidade de representação que não favorece o jogo do “drama grotesco”. Alcanço, na minha recepção, só o grotesco da forma faltando fundamentalmente o jogo de oposição dado pelo drama.  Em várias passagens do texto, percebo a potência da sátira, a mordacidade das críticas sociais, mas falta estofo dramático para os atuantes, o elemento que desencadeie a reviravolta da situação, isto é, a passagem da forma grotesca risível para a situação trágica do infortúnio.
Uma cena digna de nota a este respeito ocorre na metade da montagem, protagonizada por duas atuantes: Daiane Ferreira e Mariléa Aguiar. Identificarei simbolicamente os papéis desempenhados por elas como a jovem e a velha, respectivamente. Tal denominação serve não para evidenciar a diferença de idade entre ambas, mas sim para apontar o lugar da questão central que a cena me provocou.  
Vemos no alto da escadaria uma atuante (a jovem) trajando um belo vestido em estilo corpete; ela desce as escadas segurando com os braços abertos uma enorme manta vermelha que recobre sua cabeça; ao fundo, por trás de sua pessoa, vemos imagens flagrantes da crueldade humana sendo projetadas com recursos audiovisuais; a jovem desce solenemente arrastando por traz de si a enorme manta vermelha que varre as escadas e posteriormente o centro da área de atuação; ela não diz nada, somente deixa escapar um sorrido maléfico em sua face doce – docilidade somente interrompida pelo efeito da cicatriz proposto na maquiagem; quando se aproxima do último degrau, próximo a área de atuação, vemos surgir no alto da escadaria outra atuante (a velha) encoberta por leves tecidos transparentes de tonalidade azul; com movimentação ritualística ela entoa – numa espécie de latim onomatopaico artaudiano – melodias sacras; mesmo encoberta pelos tecidos e com baixa luminosidade é possível perceber, pelo registro de sua voz, o seu semblante tomado por uma atmosfera tensa, amarga, mas ao mesmo tempo envolvida pelo desejo de purificação. Instala-se novamente o contraponto do grotesco, permitindo-me refletir sobre as questões dramáticas abordadas pela montagem, mas importante ainda, refletir sobre a complexidade da existência humana traçando uma linha do tempo entre a juventude impetuosa e por vezes cruel do homem (a jovem) e seu desejo de revisão de vida na maturidade (a velha).
Estas questões me foram possíveis pelo “drama grotesco” trabalhado nesta cena. Portanto, é necessário ultrapassar as formas para atingir, por meio delas, seu contraponto filosófico – o jogo dialético também colocado pelo “drama grotesco”. E isto, deve ser a chama acesa no processo de trabalho de cada atuante. E se por um lado é necessário abrir mão da forma grotesca, para ultrapassá-la e deixar fluir seu discurso subjacente, é certo que o caminho para tal empreendimento começa exatamente pelo exercício da forma grotesca. Então, o elenco não deve desanimar, mas sim perceber a excelente oportunidade que esta montagem oferece para vencer este desafio. Metade do caminho já foi desbravado e o restante só depende do ímpeto criativo de cada um.   

Edson Fernando
08.12.2013